LITERATURA

Teologia/3, um conto de Eduardo Galeano

Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente seu principal protagonista me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro. Pena que Eva fosse tão surda. E pena que eu não soube me fazer entender.
Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento. Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar. E eu… bem, eu talvez não estivesse preparado para falar. Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém. Eu tinha pronunciado belas frases, como “Faça-se a luz”, mas sempre na solidão. E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloquente. Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro. Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso. Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas. Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes. Me surpreenderam. Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja. Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência. Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois. Em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá-los por terem-se feito subitamente sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos. Eles entenderam queda onde falei de vôo. Acharam que um pecado merece castigo se for original. Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca. Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas. Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar-lhes a glória de serem mortais e loucos. Entenderam tudo ao contrário. E acreditaram.

Ultimamente ando com problemas de insônia. Há alguns milênios custo a dormir. E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho. Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão…
Quando acordo, estou sozinho. Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar. Estou condenado a me desejar. De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo-me no universo vazio. Sinto-me muito cansado, me sinto muito sozinho. Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.

— Eduardo Galeano, no livro “O livro dos abraços”. tradução Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2005.

SOBRE O LIVRO
Tratar a memória como coisa viva, bicho inquieto – assim faz Eduardo Galeano quando escreve. Sua memória pessoal e a nossa memória coletiva, da América. Quando escreve, ele mostra que a história pode – e deve – ser contada a partir de pequenos momentos, aqueles que sacodem a alma da gente sem a grandiloquência dos heroísmos de gelo, mas com a grandeza da vida. Assim é este ‘Livro dos Abraços’. Em suas andanças incessantes de caçador de histórias. Galeano vai ouvindo de tudo. O que de melhor ouviu ele transforma em livros como este, onde lembra como são grandes os pequenos momentos e como eles vão se abraçando, traçando a vida.
.
FICHA TÉCNICA
Título: O livro dos abraços
Páginas: 272
Formato: 17.8 x 10.8 x 1.2 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 19/10/2005 (1ª edição)
ISBN: 978-8525414885
Tradução: Eric Nepomuceno
Selo: L&PM Pocket
*Compre o livro. clique aqui.
**Como participante do Programa de Associados da Amazon, somos remuneradas pelas compras qualificadas efetuadas. Comprando pelo nosso link você colabora com o nosso trabalho.

Mais sobre Eduardo Galeano:
Eduardo Galeano (textos, vídeos, crônicas e contos)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Leão XIV: 10 curiosidades sobre o papa

Americano de Chicago, Robert Francis Prevost foi eleito sumo pontífice em 8 de maio de…

3 horas ago

A poderosa e otimista mensagem sobre o futuro do planeta de David Attenborough aos 99 anos

David Attenborough volta com documentário sobre os oceanos e mostra por que ainda há esperança.…

4 horas ago

Leão XIV: a origem do nome escolhido pelo novo papa

O pontífice diz seguir passos do papa Leão XIII, que lançou as bases do pensamento…

4 horas ago

Tato, crônica de Rubem Alves, do livro ‘Educação dos sentidos e mais’

O tato é o sentido que marca, no corpo, a divisa entre eros e tânatos.…

5 horas ago

‘Sobre mães e filhas(os)’, um conto sensível de Rubem Alves

PARA FALAR SOBRE A RELAÇÃO entre mães e filhas(os), sugiro que leiam algumas das terríveis…

10 horas ago

Francisco: a morte não é o fim de tudo, mas um novo começo

Publicamos o prefácio que o Papa Francisco tinha escrito em 7 de fevereiro, portanto antes…

1 dia ago