No álbum “Milagres”, lançado pela Biscoito Fino, Breno Ruiz toca suas parcerias com Paulo César Pinheiro no piano, instrumento harmonizado com a voz de Alice Passos ao longo do disco. Os toques das percussões de Magno Júlio e Marcus Thadeu se juntam à performance da dupla em quatro faixas (“Contradança”, “Donana”, “Marajoara” e “Sangue Mestiço”), assim como as sete cordas do violão de aço de Rogério Caetano (“Viola de Mágoa”), o piano de Erika Ribeiro (“Condão”) e a voz de Edu Lobo (Acalanto pra quem tem filha).

Alice Passos canta Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro, nada menos do que isso
por Hugo Sukman*
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“Isso tudo é milagre
E é tão bonito
Maravilhoso
Misterioso…”
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E mesmo se não fosse esse o título do álbum, “Milagres” é uma iluminação, um acontecimento na música brasileira. Nada menos do que isso.
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O que temos aqui é a síntese de toda uma fase da obra de Breno Ruiz, talvez o mais instigante e maduro dos jovens compositores brasileiros: a da sua parceria com o decano Paulo César Pinheiro, aliás mais que uma parceria, uma obra mesmo, com estilo, sentido, uma maneira muito própria e sem paralelo de se ver e fazer a canção brasileira, como são as parcerias do poeta com Baden Powell, João Nogueira, Dori Caymmi, Mauro Duarte. Nada menos do que isso.

E temos aqui Alice Passos, uma cantora e instrumentista também muito jovem que alia a mais alta capacidade técnica e refinamento musical com algo muito difícil de se juntar numa única artista: o espírito de pesquisa – ela busca e sabe tudo da tradição da música brasileira – com uma aguda noção do contemporâneo, atenta ao que se faz hoje em dia na canção brasileira, o que talvez possamos sintetizar num espírito de pesquisa que mira ao mesmo tempo o passado e o futuro. Para fazer-se presente aqui, escolhendo e interpretando este cancioneiro de Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro. Nada menos do que isso.

Objetivamente, “Milagres” é um álbum que traz uma seleta de 11 canções da imensa parceria Ruiz-Pinheiro gestada ao longo dos últimos 20 anos – e a idade aparentemente desproporcional da parceria se explica porque Breno tinha uns 16 quando encheu-se de coragem e desejo de compor para, da pequena Itapetininga no interior do São Paulo onde foi criado, procurar o já consagradissimo e veterano compositor no Rio. E tornou-se parceiro de seu ídolo mais ou menos com a mesma idade que o também precoce Paulo César Pinheiro tornou-se parceiro de Baden, num bonito ciclo de renovação. É basicamente um disco de piano e voz, o piano do compositor, a voz da cantora, duo gravado no estúdio da gravadora Biscoito Fino, no Rio natal de Alice, pelo engenheiro de som Lucas Ariel, também responsável pela masterização, a partir da mixagem de Matias Correa. Tal requinte sonoro que se ouve também se deve ao magnífico piano Steinway do estúdio da Biscoito Fino, que já pertenceu à Filarmônica de Viena, e brilha na singeleza do piano e voz, sobretudo numa obra como a de Breno, cuja composição nasce do piano e, mais do que isso, da tradição do piano brasileiro, dos pianeiros do século XIX, passando por Nazareth e Chiquinha, Ary Barroso, Tom Jobim e assim por diante, chegando em seu estilo próprio e suas harmonizações modernas. Nada menos do que isso.
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“Milagres” é um tal acontecimento que conta com a participação do criteriosíssimo Edu Lobo, que junta sua voz à voz de Alice e ao piano de Breno no “Acalanto pra quem tem filha”, emprestando também o seu prestígio: Edu não é apenas pai de filhas (como Alice e Paulo César Pinheiro) e grande “acalantista” (ouçam “Acalanto”, dele e de Chico Buarque, ou “Primeira cantiga”, com o próprio Paulo César Pinheiro), mas um dos maiores compositores da linhagem que Breno prossegue, e que chegou ao estúdio para gravar sua participação trazendo a música de Breno escrita por ele a mão na partitura. Nada menos do que isso.

As participações em “Milagres” são poucas e significativas. Grande 7 cordas da cena brasileira – além de solista virtuose, é do conjunto de Zeca Pagodinho – Rogério Caetano traz seu violão de cordas de aço para ambientar “Viola de mágoa” ao seu habitat natural, caipira. Em “Condão”, a mágica lenda descrita na canção, é magicamente embalada por dois pianos, o de Breno e o de Erika Ribeiro. Magno Júlio e Marcus Thadeu, jovens multipercussionistas oriundos da já famosa e musicalíssima cena de Cordeiro, no interior fluminense, contribuem ao já “dançante” piano de Breno em “Contradança”, “Donana”, “Marajoara” e “Sangue mestiço”. Isso para não falar do coro de amigos, uma espécie de who’s who da cena musical carioca contemporânea, em “Marajoara”, e, reduzido, em “Cantiga de menina”. O resto é piano e voz, nada menos do que isso.
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O repertório, como dizia lá em cima, busca a síntese da parceria Ruiz-Pinheiro. E qual seja tal síntese? Paulo César Pinheiro costuma dizer que Breno pulou do século XIX para o XXI sem passar pelo XX. Ouçam “Contradança” para entender precisamente o que ele quer dizer: trata-se uma dança brasileira do século XIX, um lundu, mas com todo o jeito de música brasileira de hoje, sobretudo em termos harmônicos, e cantado por Alice com o suingue de hoje, o jeito de cantar moderno, sem efeitos, da música brasileira atual – sem deixar de ser o velho lundu dos salões.

Em síntese, a obra de Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro busca trazer para a linguagem da canção brasileira contemporânea a paisagem musical e literária que formou o Brasil e sua cultura. Há em “Milagres”, por exemplo, um punhado de canções que buscam ambientar a sensualidade brasileira em sua natureza, coisas exuberantes como “Toda morena”, “Sangue mestiço”, “Marajoara” e “Donana”, típicas da dupla mas nas quais se vislumbra Villa-Lobos na música, Manuel Bandeira na poesia, Guimarães Rosa na prosa, autores que nos formaram. Nada menos do que isso.
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As lendas brasileiras – não existentes, criadas pelos compositores, como o fizeram Villa, Bandeira, Rosa e tantos mais – estão em “Condão”, “Cantiga de menina”, “Dentro de casa”, todas em busca de um jeito brasileiro na forma da canção como no conteúdo, no jeito de tocar de Breno, emulando os pianeiros e suas levadas mas também os grandes pianistas harmonizadores, e no jeito de cantar de Alice, entre a técnica mais precisa e a emoção das cantoras populares, nada menos do que isso.

Ambos professores, ele de piano em São Paulo, ela de canto no Rio, Breno Ruiz e Alice Passos têm em comum também sólidas e criteriosas trajetórias artísticas. Ainda muito jovens, já são muito admirados. Ele participou de vários shows e discos coletivos, e já lançou dois discos solo, “Cantilenas brasileiras” (também de sua parceria com Paulo César Pinheiro) e, este ano, “Pequenas impressões sobre o caos”, de sua nova parceria com o letrista Roberto Didio, que aponta para outra dimensão de sua inspiração, mais urbana. Já Alice, pesquisadora nata, lançou em 2016 “Voz e violões”, uma magnífica pesquisa sobre a obra de compositores contemporâneos que fazem suas músicas ao violão, e, em 2020, “Ary”, desta vez um mergulho no passado (mas de forma contemporânea, acompanhada pelos violonistas André Siqueira e Mauricio Massunaga), na obra de Ary Barroso. “Milagres”, o novo álbum, finalmente junta Alice e Breno em disco, eles que já há alguns anos fazem shows entre Rio e São Paulo. Representantes de uma geração da canção brasileira tão brilhante e inventiva como ainda pouco conhecida fora do meio musical – vejam apenas alguns dos nomes que estão no coro de “Marajoara” para sentir a barra: Miguel Rabello e Luisa Lacerda, Renato Frazão e Mariana Bernardes, Mariana Baltar e Pedro Paulo Malta, Pedro Miranda e Fred Martins – eles representam a continuidade criativa de uma tradição em plena ebulição. Como diz melhor a canção que dá título ao disco, “isso tudo é milagre/E é tão bonito/Maravilhoso…/Misterioso…”. E a mesma canção pergunta: “Onde o milagre se esconde?”. E o álbum que a contém responde: aqui, no presente destas canções. Nada menos do que isso.
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Hugo Sukman, fevereiro de 2024

revistaprosaversoearte.com - 'Milagres' - álbum de Alice Passos e Breno Ruiz, lançado pela Biscoito Fino
Capa do álbum ‘Milagres’ • Alice Passos e Breno Ruiz • Biscoito Fino • 2024

DISCO ‘MILAGRES’ • Alice Passos e Breno Ruiz • Biscoito Fino • 2024
Composições / compositores
1. Milagres (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
2. Condão (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) | Participação especial Érika Ribeiro
3. Toda morena (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
4. Cantiga de menina (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
5. Sangue mestiço (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
6. Dentro de casa (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
7. Marajoara (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
8. Viola de mágoa (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) | Participação especial Rogério Caetano
9. Donana (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
10. Contradança (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro)
11. Acalanto pra quem tem filha (Breno Ruiz e Paulo César Pinheiro) | Participação especial Edu Lobo
– ficha técnica –
Alice Passos (voz – fx. 1-11; ocean drum – fx. 4) | Breno Ruiz (piano – fx. 1-11; voz – fx. 6) | Magno Julio (percussão – fx. 5, 7, 9, 10) | Marcus Thadeu (percussão – fx. 5, 7, 9, 10) | Participação especialÉrika Ribeiro (piano – fx. 2) | Rogério Caetano (violão 7 cordas de aço – fx. 8) | Edu Lobo (voz – fx. 11) | Coro (fx. 4): Ignez Perdigão, Luisa Lacerda, Mariana Baltar e Mariana Bernardes | Coro (fx. 7): André Luiz Del Gaudio, Fred Martins, Hugo Sukman, Ignez Perdigão, Leonardo Lichote, Luisa Lacerda, Mariana Baltar, Mariana Bernardes, Matias Correa, Miguel Rabello, Pedro Miranda, Pedro Paulo Malta, Renato Frazão || Direção musical: Breno Ruiz e Alice Passos | Arranjos: Breno Ruiz com colaborações dos envolvidos | Produção: Alice Passos | Gravado no estúdio Biscoito Fino em junho de 2023 | Capa: Frederico Cavaliere | Textos de: Hugo Sukman, Joyce Moreno e Egberto Gismonte | Fotos: Isabela Espíndola || Agradecimentos: André Luiz Del Gaudio, Sérgio Ferreira, Dorival, Rodrigo Braga Mendes, Hugo Sukman, Marco de Almeida, Paulo Cesar Pinheiro, Luciana Rabello, Bia Paes Leme, Ignez Perdigão, Joyce Moreno, Anna Paes, Kati Almeida Braga, Jorge Lopes, Rafael Freire, Lucas Ariel || Assessoria de imprensa: Vivi Drumond e Miriam Roia / Somar Comunicação Integrada | Selo: Biscoito Fino | Formato: CD / Digital | Ano: 2024 | Lançamento: 22 de março | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
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>> Siga: @alicepassoscantora | @ruizbreno | @biscoitofino

SERVIÇO
SHOW: “Milagres”, de Alice Passos e Breno Ruiz
Participações especiais: Marcus Tadeu e Magno Júlio
Local: Centro da Música Carioca Artur da Távola
Data: 12 de abril de 2024 (sexta-feira)
Horário: 19h
Endereço: Rua Conde de Bonfim, 824 – Tijuca
Ingressos: a partir de R$ 25 (meia-entrada)
Capacidade: 159 lugares + 2 cadeirantes
VENDAS ONLINE
Bilheteria: de quarta a sexta, das 14h às 19h; sábado das 14h às 18h; e domingo, das 10h às 17h
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Série: Discografia da Música Brasileira / Canção popular / MPB / álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske
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