Canção

‘Wanda Sá 80 anos’ celebra a Bossa Nova em álbum repleto de convidados

Wanda Sá 80” (Biscoito Fino) é uma sutil – não fosse um disco Bossa Nova – resposta a essa pergunta, sem retórica, sem voz alta, apenas pelo exemplo: oito bossas novinhas em folha, compostas por veteranos do movimento (Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato), “filhos” como Wanda (Marcos Valle, Abel Silva, Ronaldo Bastos, Jards Macalé, Cristovão Bastos, Joyce Moreno, Paulo César Pinheiro) e até netos (Romulo Fróes, Bena Lobo, Nando Reis)
Wanda Sá – foto: Marcos Hermes

‘Wanda Sá 80 anos’
por Hugo Sukman*
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Mais misteriosa do que a razão do amor que nasce à tarde, talvez à tardinha, no Rio de Janeiro em abril – cenário, tempo e tema da bossa nova clássica “Não pergunte demais”, de Roberto Menescal e Abel Silva que abre o álbum “Wanda Sá 80” – é a pergunta que há décadas se repete cada vez que sai um disco de Bossa Nova: por que não se compõe mais novas bossas? Por que, em se tratando de um gênero musical tão eterno e aberto, normalmente os intérpretes se restringem ao – tudo bem que vasto e inigualável – repertório criado do “Chega de saudade” de 1958 até mais ou menos 1964, 65, no mais tardar 66, vá lá?
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Wanda Sá 80” (Biscoito Fino) é uma sutil – não fosse um disco Bossa Nova – resposta a essa pergunta, sem retórica, sem voz alta, apenas pelo exemplo: oito bossas novinhas em folha, compostas por veteranos do movimento (Roberto Menescal, Carlos Lyra, João Donato), “filhos” como Wanda (Marcos Valle, Abel Silva, Ronaldo Bastos, Jards Macalé, Cristovão Bastos, Joyce Moreno, Paulo César Pinheiro) e até netos (Romulo Fróes, Bena Lobo, Nando Reis).

Mesmo o que não é novo, é bossa nova de fora do período clássico, como a magnífica redescoberta de “A tarde”, bossa de Francis Hime e Olivia Hime – ambos típicos “filhos” – composta no início da década de 80 e de temática mais reflexiva. Ou a regravação do standard “There will never be another you”, que sobretudo na versão de Chet Baker, de 1954, faria a cabeça musical da moçadinha que desenvolveria a Bossa Nova um tempinho depois.
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Como se fosse de fato uma festa pelos seus 80 anos – e os 80 de toda a sua geração de filhos da bossa nova – Wanda Sá ganhou canções espetaculares de presente. Pouco antes de morrer por exemplo Carlos Lyra deixou para a Wanda um samba que faz jus ao seu título de maior melodista da Bossa Nova, “O tom do amor”, cuja letra de Ronaldo Bastos situa a coisa onde e como ela deve ser: uma história de amor vivida entre o Posto 6 e o Arpoador – a Copanema, onde Wanda aliás foi criada. Participa da faixa sua filha Bebel Lobo, cantora e atriz, e que tem uma comovente afinidade vocal com a mãe – lembra por vezes a suavidade firme da jovem Wanda do primeiro disco, “Vagamente”, de 1964.

“Juntinhos” é outro inestimável presente deixado por um amigo recém falecido, João Donato, canção tipicamente bossa nova pois tem uma estrutura harmônica complexa, cheia de modulações, mas que resulta numa simplicidade desconcertante ao ouvido, viciante mesmo, como se fosse um mantra. Um dos neobossanovistas do disco, Nando Reis entrou perfeitamente no espírito donatiano – e das letras que normalmente se faz para sua música – e na letra descreve uma história de amor bossa nova arquetípica, quase abstrata e etérea, toda estruturada numa sequência de verbos, que resulta num Donato do tamanho de seus clássicos. Participa da faixa, dividindo com Wanda o quebra-cabeça melódico a, no caso literalmente, filha da Bossa: Bebel Gilberto.
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Numa atitude de imenso respeito pela Bossa Nova, Jards Macalé dá um tempo na sua habitual criatividade dionisíaca e conforma-se, apolíneo, em samba de bela melodia. Também da estética do choque e da pesquisa do samba tradicional, o letrista paulista Romulo Fróes trabalha na tradição e no vocabulário da bossa, “vagando a onda leve da canção”, como diz sua letra a certa altura. “A voz de sal”, resultado dessa aparentemente inusitada parceria para um disco como este, nasce também como uma nova Bossa Nova clássica – ou seja, moderna, praiana, metalinguística, mas levíssima, como se não fosse.

Compositor de canções grandiosas, sambas e choros, o maestro Cristovão Bastos também se conformou à estética aparentemente minimalista da Bossa Nova, e deu a Wanda uma canção de melodia complexa e belíssima, acordes dissonantes, e uma letra ao mesmo tempo leve e sofrida de Abel Silva, romântica e nostálgica, como uma letra clássica da bossa. “Foi sim” é uma canção de dois mestres.
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“Valsa nova” – quase um trocadilho provocativo, porque uma valsa levíssima como tantos standards da bossa (lembrem “Pela luz dos olhos teus”, de Vinicius, “Chovendo na roseira” de Tom) – é um presente que Wanda ganhou de seu filho compositor, Bena Lobo, que até o ano passado morava longe, em Portugal. A saudade do filho e sua primeira parceria musical é o assunto da letra escrita pela própria Wanda – compositora bissexta, mas que desde o primeiro disco, com a também confessional “Encontro”, parceria com Nelson Motta, por vezes aparece. O resultado, que tem participação vocal do próprio Bena, é literalmente uma valsa (bossa) nova.

Natural também, como Wanda, ali do Posto 6, fronteira de Copacabana e Ipanema, e filha da Bossa, Joyce Moreno pinçou da sua vasta obra autoral em parceria com Paulo César Pinheiro uma bossa nova típica para dar de presente a Wanda: “Se solta, coração”. As duas dividem a faixa de forma linda e comovente, como se toda a geração delas cantasse junto a canção que – como tantas da bossa – trata da espera de um novo amor, suavemente.
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Na clave aparentemente oposta, “Só desalento” trata de um amor que aparentemente terminou. Mas tanto a letra de Nando Reis como a música de Marcos Valle – outro octogenário filho da Bossa – têm a mesma leveza e as mesma qualidades melódicas, harmônicas e poéticas da canção “positiva” de Joyce e Paulo César Pinheiro, o que demonstra exatamente o que é a Bossa Nova, no fundo o tema do álbum: um ponto de vista – leve e profundo, simples e complexo – da vida e da música. É isso mais ou menos o que se celebra aqui.
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Se entre compositores, Wanda Sá mistura gerações, o mesmo se dá entre os arranjadores. Da sua geração, ela convoca Antônio Adolfo (que começou sua carreira em 1964, como Wanda, na peça “Pobre menina rica” de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes), Dori Caymmi (que lindos desenhos de flautas na música de Joyce) e Cristovão Bastos. Da geração seguinte Wanda chamou Celso Fonseca que, originário da banda de Gilberto Gil, tornou-se a partir da década de 90 um bossanovista empedernido como compositor, guitarrista e arranjador; o saxofonista Jessé Sadoc, e seu pianista Adriano Souza. E chega até o contrabaixista Guto Wirtti (que recentemente fez seu debut como produtor e arranjador de Bossa Nova no último disco de Mariana de Moraes cantando do avô Vinicius).

Principal cantora da Bossa Nova na atualidade – fez parte do movimento, tendo lançado clássicos como “Inútil paisagem” e “Vagamente; cultuou a vida inteira o gênero lançando novas composições e mantendo viva a memória dos clássico; e não para de divulgar o gênero em excursões anuais pelo Brasil e pelo circuito Estados Unidos, Europa, Japão – Wanda Sá na verdade encarna o gênero desde que apareceu na capa mais bossa nova que existe, a do LP “Wanda vagamente” (1964), no qual caminha pela areia da praia de Ipanema arrastando seu violão, numa incrível imagem-síntese.
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Daí a coerência deste “Wanda Sá 80”, uma celebração de sua carreira, do gênero musical que encarna desde sempre, de sua geração e do seu legado. Tão coerente que a única faixa de todo o álbum que não é uma Bossa Nova, a canção religiosa “Ame ao senhor” – que reflete o cristianismo muito pessoal de Wanda, acima de igrejas – segue no arranjo de Adriano Souza e na sua interpretação uma estética bossanovista.

É que, como já escrevi alguns anos atrás sobre um outro disco dela, muita gente, no Brasil e no mundo, faz ou mesmo é bossa nova. Mas só Wanda Sá é bossa nova mesmo. Ou melhor, é bossa nova em todas as suas dimensões.
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Por isso, quando perguntarem da próxima vez por que não se faz mais novas bossas no Brasil, saque o álbum “Wanda Sá 80”, ponha para tocar a primeira faixa, sabiamente chamada “Não pergunte demais”, música de Roberto Menescal e letra de Abel Silva, arranjo de Antônio Adolfo (que começa com incríveis convenções logo na introdução) e Wanda começa a cantar: “Foi à tarde, talvez à tardinha/No Rio de Janeiro em abril…”. A nova bossa está toda aí. Nova e eterna.
* Hugo Sukman (jornalista, escritor e crítico de música carioca) —

Capa do disco ‘Wanda Sá 80’ • Wanda Sá • Selo Biscoito Fino • 2025 | foto: Marcos Hermes

Disco ‘Wanda Sá 80’ • Wanda Sá • Selo Biscoito Fino • 2025
Canções / compositores
1. Não pergunte demais (Roberto Menescal e Abel Silva)
2. Tom do amor (Carlos Lyra e Ronaldo Bastos) | Feat. Isabel Lobo
3. A voz de sal (Jards Macalé e Romulo Fróes) | Feat. Jards Macalé
4. Valsa nova (Wanda Sá e Bernardo Lobo) | Feat. Bernardo Lobo
5. Juntinho (Donato e Nando Reis) | Feat. Bebel Gilberto
6. A tarde (Francis Hime e Olivia Hime)
7. Foi sim (Cristovão Bastos e Abel Silva)
8. Se solta coração (Joyce Moreno e Paulo César Pinheiro) | Feat: Joyce Moreno
9. There will never be another you (Harry Warren e Marck Gordon)
10. Só desalento (Marcos Valle e Nando Reis)
11. Ame ao senhor (Guilherme Kerr e Sérgio Pimenta)
– ficha técnica –
Faixa 1 – Voz: Wanda Sá; Piano: Antonio Adolfo; Baixo: Jorge Helder; Bateria: Marcio Bahia; Guitarra: Roberto Menescal; Violão: Lula Galvão; Flauta: José Carlos Bigorna; Arranjo: Antonio Adolfo | Faixa 2 – Voz: Wanda Sá; Participação: Bebel Lobo (voz); Violão: Celso Fonseca; Baixo: Alexandre Cavallo; Bateria: Flavio Santos; Teclado: Bruce Lemos; Arranjo: Celso Fonseca | Faixa 3 – Voz: Wanda Sá; Participação: Jards Macalé (voz); Piano: David Feldman; Baixo acústico: Guto Wirtti; Bateria: Ricardo Costa; Violão: Lula Galvão; Trombone: Marlon Sette; Flauta: Jorge Continentino; Arranjo: Guto Wirtti | Faixa 4 – Voz: Wanda Sá; Participação: Bena Lobo (voz); Piano: Antonio Adolfo; Baixo: Jorge Helder; Bateria: Marcio Bahia; Cello: Jaques Morelenbaum; Violinos: Daniel Guedes, Mateus Soares; Viola: Victor Botene; Arranjo: Antonio Adolfo | Faixa 5 – Voz: Wanda Sá; Participação: Bebel Gilberto; Piano: David Feldman; Violão: Lula Galvão; Baixo acústico: Guto Wirtti; Bateria: Ricardo Costa; Trombone: Marlon Sette; Flugel: José Arimatea; Flauta: Jorge Continentino; Arranjo: Guto Wirtti | Faixa 6 – Voz: Wanda Sá; Piano: Cristovão Bastos; Baixo: Jorge Helder; Bateria: Jurim Moreira; Violão: Miguel Rabello; Clarinete: Rui Alvim; Flauta: Dirceu Leite; Cello: Iura Ranevsky; Arranjo: Cristovão Bastos | Faixa 7 – Voz: Wanda Sá; Piano: Cristovão Bastos; Baixo: Jorge Helder; Bateria: Jurim Moreira; Violão: Miguel Rabello; Sax alto: Rui Alvim; Flauta: Dirceu Leite; Arranjo: Cristovão Bastos | Faixa 8 – Voz: Wanda Sá; Participação: Joyce Moreno (voz); Piano: Adriano Souza; Baixo: Jorge Helder; Bateria: Jurim Moreira; Violão: Dori Caymmi; Flautas: José Carlos Bigorna, Danilo Sinna; Arranjo: Dori Caymmi | Faixa 9 – Voz: Wanda Sá; Piano: Adriano Souza; Baixo: Jorge Helder; Bateria: Jurim Moreira; Violão: Lula Galvão; Sax: Marcelo Martins; Arranjo: Adriano Souza | Faixa 10 – Voz: Wanda Sá; Piano: Paulo Calazans; Baixo: Jefferson Lescowich; Bateria: Felipe Alves; Guitarra: Bernardo Bosisio; Sax e Flauta: Marcelo Martins; Trompete: Joabe Reis; Arranjo: Jessé Sadoc | Faixa 11 – Voz: Wanda Sá;Piano: Adriano Souza; Arranjo: Adriano Souza || Direção artística: Regina Oreiro | Produção musical: Regina Oreiro, Wanda Sá e Marcus Preto | Gravado no estúdio Biscoito Fino – Rio de Janeiro/RJ | Gravação, mixagem e masterização: Lucas Ariel | Capa e fotos: Marcos Hermes | Texto: Hugo Sukman | Assessoria de imprensa: Belinha Almendra  / Coringa Comunicação | Selo: Biscoito Fino | Formato: CD digital / físico | Ano: 2025 | Lançamento: 27 de junho | ♪Ouça o álbumclique aqui.
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>> Siga: @wanda_sa_oficial / @biscoitofino

Wanda Sá – foto: Marcos Hermes

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Série: Discografia da Música Brasileira / Canção / Álbum.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske

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