Cá estamos novamente! Hoje eu queria falar um pouquinho sobre um tema que, de certo modo, ficou implícito na minha última coluna, na qual falava sobre os conceitos de estado de exceção e homo sacer no pensamento de Giorgio Agamben (se você não leu e tiver interesse, clica aqui!): a noção de biopolítica. Como vejo em Foucault a resposta para muitas perguntas que me faço, optei por trazer pontos de sua obra relativa ao assunto, mas, aviso de antemão, seria impossível esgotar esse assunto aqui.

Com o advento do século XIX presencia-se o fenômeno da estatização do biológico, isto é, a tomada do poder sobre o homem como ser vivente. Desde então, na teoria clássica da soberania, o direito de vida e de morte dos súditos passa a ser encarado como atributo fundamental do soberano que passa a gerir esse direito quase sempre de modo desequilibrado, tendo em vista que o mesmo pende mais para o lado da morte. Esse desequilíbrio explica-se através da consolidação do poder soberano em relação à vida de seus súditos ser verificado, incontestavelmente, através da faculdade do soberano de matá-los.

O direito de fazer morrer e deixar viver que, anos mais tarde, transmuta-se para a noção de fazer viver e deixar morrer coloca em xeque a questão da parcela da autonomia cedida em benefício da manutenção da vida dos súditos através do pacto hobbesiano. No livro “Em defesa da sociedade”, Michel Foucault é incisivo ao questionar se “não deve a vida ficar fora do contrato, na medida em que ela é que foi o motivo primordial, inicial e fundamental do contrato?” (FOUCAULT, 2010, p.203). Mediante tal questionamento é importante destacar que essa reunião com intuito de constituir um soberano, que detém poder absoluto inclusive sobre a vida das pessoas, não tem outro motivo que não seja o de se proteger do perigo e manter sua vida. Sendo assim, a questão posta por Foucault sublinha a subversão do pacto originário no que lhe é mais caro: a manutenção da vida pela via da segurança estatal. Não que a vida dos súditos deixe de ser o foco do Estado, mas, o prisma pelo qual essa relação passa a se configurar não pode mais oferecer aos -outrora temerosos- súditos a garantia da segurança pretendida, tendo em vista que o próprio Estado, a julgar pela sua conveniência, poderá ceifar-lhes a vida.

A técnica que permite esse deslocamento do foco estatal em relação a vida surge durante a segunda metade do século XVIII. A nova técnica é distinta da disciplina, mas não a suprime e, sim, a engloba, porém trazendo diferenças bem marcadas em relação à sua antecessora. A nova tecnologia de poder, diferentemente da disciplina, não busca atuar considerando a individualidade e sim a coletividade e os acontecimentos que a afetam como nascimento, produtividade, doença e morte. Essa tecnologia, portanto, está direcionada para o homem espécie ou, em outras palavras, a vida como pura zoé[1], noção já citada na coluna sobre Agamben.

Há, assim, o surgimento de um elemento desconhecido pela teoria do direito até então e que está além dos indivíduos. Trata-se desse novo corpo múltiplo, a população. Apenas sob a luz desse novo corpo múltiplo é que os fenômenos fazem sentido para a biopolítica, já que a natureza destes é coletiva, aleatória, imprevisível e com duração limitada. Os mecanismos biopolíticos vão atuar em torno da aleatoriedade visando otimizar um estado de vida, tornando a noção de fazer viver e deixar morrer muito mais rica em sentido do que outrora.

Em contraponto à disciplina, a nova técnica visa controlar acontecimentos fortuitos e suas probabilidades e, assim, eventualmente modificá-los e trabalhar para compensar seus efeitos. O referido controle opera-se considerando processos biológicos ou biossociológicos das massas humanas evidenciando o caráter biorregulamentador do Estado.  Nesse sentido, em “Segurança, Território e População” o filósofo esclarece que:

É a população, portanto, muito mais do que o poder do soberano, que aparece como o fim e o instrumento do governo: sujeito de necessidades, de aspirações, mas também objeto nas mãos do governo. [Ela aparece] como consciente, diante do governo, do que ela quer, e também inconsciente do que a fazem fazer. O interesse como consciência de cada um dos indivíduos que constitui a população e o interesse como interesse da população, quaisquer que sejam os interesses e as aspirações individuais dos que a compõem, é isso que vai ser, em seu equívoco, o alvo e o instrumento fundamental do governo das populações. (FOUCAULT, 2008, p.140)

O saber do governo está diretamente vinculado ao conhecimento dos processos[2], em sua totalidade, que dizem respeito à população. Portanto a administração dessa massa coletiva de fenômenos demanda profundidade, sutileza e zelo aos detalhes. A arte de governar exige controle atento em especial no que tange aos habitantes, riquezas, comportamentos individuais e coletivos, assemelhando-se a vigilância de um pai no seio familiar, como Foucault assinala em “Microfísica do Poder”.

Com os elementos que temos até aqui já é possível compreender o poder que a gestão das massas exerce no que tange à subjetividade das pessoas, bem como o nível do controle operado e viabilizado através de instrumentos como a estatística, cálculo e a polícia.  Foucault é taxativo ao afirmar que a economia e a opinião são os dois grandes elementos da realidade a se manipular pelo governante, o que aponta para o que o autor chama de o problema do público. Tal problema consiste na intervenção sobre a consciência das pessoas por parte da razão do Estado visando a mudança não só de suas opiniões mas, principalmente, de suas ações que afetam a dinâmica desses sujeitos econômicos e políticos. Fica evidente a nítida manipulação da subjetividade da população, o que nos permite questionar a viabilidade na prática de noções muito caras ao direito como, por exemplo, a autonomia pessoal. Mas esse assunto que, particularmente, acho bastante digno de reflexão para além da perspectiva jurídica fica para uma próxima coluna!

Um abraço e até a próxima!

 

[1] Os gregos utilizavam as palavras zoé e bios para expressar o que chamamos de vida. Para eles a zoé consistia no simples fato de viver, comum a todos os seres vivos e, por sua vez, a bios expressava uma forma de viver própria de um indivíduo ou grupo.  A simples vida natural, no entanto, apenas é considerada no mundo clássico, na polis, quando analisada sob o prisma de mera vida reprodutiva. Foucault, tendo por base a noção aristotélica de que o homem é um animal político, sintetiza o processo pelo qual a vida natural é incluída nos mecanismos e cálculos do Estado e a política alcança o status de biopolítica em “Vontade de saber”: “ Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente” (FOUCAULT, 2001, p.127)

[2] Esse domínio acerca dos processos é denominado na obra foucaultiana como economia política.

Pra quem quiser ler mais sobre o assunto, para este texto tive como referências:

FOUCAULT, Michel. (2008) Segurança, Território e População. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes.

FOUCAULT, Michel. (2010) Em Defesa da Sociedade. 2ª. Ed. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: WMF Martins Fontes.

FOUCAULT, MICHEL. (2001) História da Sexualidade I: A Vontade de Saber; tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 14.ed. – Rio de Janeiro: Edições Graal.

FOUCAULT, Michel. (2016) Microfísica do Poder. 4ª. Ed. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Paz e Terra

*Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestranda em Sociologia e Direito pela UFF e apaixonada por filosofia.

Leia outras colunas da autora:
Anna Carolina Cunha Pinto (colunista)







Literatura - Artes e fotografia - Educação - Cultura e sociedade - Saúde e bem-estar