Esta coluna é dedicada à memória de Maria Eduarda da Conceição, 13 anos, morta com três balas “perdidas”, durante sua aula de educação física na cidade do Rio de Janeiro, no último dia 30. E, ainda, à memória de todos adolescentes cujas vidas foram interrompidas dentro da mesma lógica cruel e pelos mesmos agentes.

Giorgio Agamben é um filósofo italiano cuja obra extensa se dedica a temas que variam desde a estética à filosofia política, sendo a última temática notavelmente marcada pela figura do homo sacer e do aclamado conceito de estado de exceção. E é sobre isso que gostaria de falar hoje, tocada pelas mortes recentes (e constantes, vale dizer) de jovens que guardam entre si algumas particularidades, como Duda, a quem dedico esta coluna.
É bem possível que você esteja se perguntando o significado homo sacer. Agamben faz alusão à obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana era incluída no ordenamento exclusivamente com fito de impor a sua exclusão, isto é, a sua absoluta matabilidade. O enquadramento nesta categoria considerava a prática de determinado delito e, em virtude disto, assegurava que, caso encontrado e morto o autor deste ato, não caberia a quem lhe tirou a vida qualquer punição pelo homicídio praticado. Além disto, a relação com o sagrado também é modificada passando tal indivíduo a ser excluído da esfera humana e também divina. Para melhor compreensão dessa vida matável, Agamben propõe que:

Observemos agora a vida do homo sacer, ou aquelas, em muitos aspectos similares do bandido (…). Ele foi excluído da comunidade religiosa e de toda vida política: não pode participar dos ritos de sua gens, nem (se foi declarado infamis et intestabilis) cumprir qualquer ato jurídico válido. Além disto, visto que qualquer um pode matá-lo sem cometer homicídio, a sua inteira existência é reduzida a uma vida nua despojada de todo direito, que ele pode somente salvar em uma perpétua fuga ou evadindo-se em um país estrangeiro. Contudo, justamente por ser exposto a todo instante a uma incondicionada ameaça de morte, ele encontra-se em perene relação com o poder que o baniu. Ele é pura zoé, mas a sua zoé é capturada como tal no bando soberano e deve a cada momento ajustar contas com este, encontrar o modo de esquivá-lo ou de enganá-lo. Neste sentido, como o sabem os exilados e os banidos, nenhuma vida é mais política do que a sua. (2002, p.189)

Importante observar que originalmente a vida nua era observada à margem do ordenamento jurídico porém, progressivamente, nota-se que seu espaço passa a coincidir com o espaço político. Quando o Estado passa a colocar a vida biológica no centro de seus cálculos, ele está ratificando o vínculo secreto que une o poder à vida nua- a protagonista da obra que analisamos por ora, isto é, é a vida matável e insacrificável do homo sacer. O homem como vivente abandona a condição de objeto para alcançar a de sujeito do poder político, não havendo mais dúvida de que o que está em jogo é a vida nua do indivíduo.

Por sua vez, o outro conceito que trago hoje, o de estado de exceção, é compreendido por Giorgio Agamben como a instauração de uma guerra civil, que serve de argumento para a suspensão de direitos daqueles rotulados como inimigos. Neste sentido, extrai-se de “Estado de exceção” a definição que segue:

A instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político […] o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como paradigma de governo dominante na política contemporânea (2004, p.13)

Em outras palavras através deste, pode-se criar, mesmo que em um estado dito democrático, práticas de emergência permanentes e seletivas como verdadeiro paradigma de governo, gerando uma relação íntima e indeterminada entre democracia e absolutismo. A peculiaridade do estado de exceção é que ele, ao contrário do direito de guerra, não é um direito especial e sim a suspensão da ordem jurídica vigente, coexistindo a exceção e a regra ou, em outras palavras, coexistindo, quem pode morrer para que outros sigam vivendo. Agamben esclarece que:

É como se o direito contivesse uma fratura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permaneça em vigor (AGAMBEN, 2004, p.49).

As sucintas observações acerca de dois importantes pontos da obra agambeniana não esgotam, por certo, a rica temática. Porém, com esta breve elucidação creio ser possível demonstrar a conexão e grande pertinência de tais noções trazidas pelo filósofo italiano com nossa realidade. Enxergo neles a tradução de inúmeras situações que nos sucedem mas nada, especialmente com os acontecimentos recentes, me faz ver mais sentido e aplicação dos mesmos na nossa realidade que o homicídio de jovens que guardam entre si semelhanças determinantes para a sua morte. As notícias sobre a morte de jovens, especialmente por intermédio da ação de agentes estatais, apontam para um perfil bastante comum entre as vítimas: esses indivíduos cujas vidas são interrompidas vivem nas periferias e são negros e pobres.

Imprescindível ressaltar que tais mortes não podem ser compreendidas como mera coincidência. A sistemática morte da nossa juventude pela polícia só é possível por ser fruto de uma escolha pautada pela seletividade, justificada como ameaça para a segurança da sociedade. Nesse sentido, cabe lembrar da constante busca pela criminalização da vítima como se isso, de algum modo, pudesse atenuar o fato de que à ela restou uma pena, a de morte, não aplicada em nosso país e num tribunal de exceção sequer constituído por outras figuras que não os policiais envolvidos naquele episódio. Sem direito à defesa e contraditório, quem morre ainda é “responsabilizado” pela sua morte: morreu porque, por alguma razão, era uma ameaça. Mas será que é sempre assim? Qual foi o risco que Maria Eduarda, de 13 anos, oferecia dentro dos muros de sua escola em Acari? O que Eduardo, de 10 anos, poderia ter feito para justificar os tiros de fuzil que lhe tiraram a vida enquanto brincava sentado na porta de sua casa no Complexo do Alemão?

Interrante observar que, apenas em 2016 tenhamos esgotado a possibilidade de uso do termo “autos de resistência” que constituiam-se em verdadeira política a serviço do extermínio e do controle social do inimigo eleito cujo perfil fora apontado acima. A demonstração por dados, retirados de relatórios de instituições como a Anistia Internacional, da prevalência deste perfil entre os eleitos para morrer pela polícia militar não permite dúvida sobre a equiparação destes jovens à figura do homo sacer.

Assim, estando ou não em conflito com a lei, será o jovem negro e pobre o alvo, os “indignos de vida”, como diria Orlando Zaccone, que, a depender do caso, terão a “sorte” de cair no sistema que o criminaliza, sendo apreendido e depositado em uma unidade socioeducativa, escapando assim de outro destino comum a eles, a morte, naturalizada e admitida como política de segurança.

Sempre que me deparo com essas situações penso na sempre oportuna reflexão de Bauman sobre o legado do Holocausto, muito apropriada para o silêncio comum a maior parte da sociedade quando desses verdadeiros assassinatos:

“[…] demonstrar a futilidade da lei pela execução sumária de suspeitos, aprisionar sem julgamento nem prazo de soltura, espalhar o terror que aleatória e casualmente infligia tormentos aos montes – foi amplamente comprovado que tudo isso serve à causa da sobrevivência e é, portanto, ‘racional’”.

Contrariando não só a Constituição Cidadã de 1988, mas aviltando os direitos intrínsecos ao homem, infelizmente, episódios de violência contra jovens negros, pobres e periféricos parecem cada dia mais comuns e mais justificáveis sob o argumento da insegurança de uma parcela da população. Há uma latente criminalização da pobreza que não se cala nem mesmo diante da morte dessas pessoas, considerando a tendência de culpabilizar a vítima no intuito de tornar aceitável o assassinato da mesma. É preciso compreender que essa prática desumaniza não só os indivíduos cujas vidas são ceifadas e tornam-se mero número, eis ausente, em muitos casos, a adequada responsabilização de quem lhes tira a vida de forma vil. A sociedade que consigna essa prática também se desumaniza nesse permanente estado de exceção que elege, em variadas frentes, aqueles que serão os homo sacer de nossa época.

Referências utilizadas para a construção desse texto:
AGAMBEN, Giorgio. (2004) Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo.
______ (2002) Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 1. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG.
ANISTIA INTERNACIONAL (2017) Anistia Internacional – Informe 2016/ 2017 – O estado dos direitos humanos no mundo. Tradução: Verve Traduções. Londres: Anistia Internacional
ANISTIA INTERNACIONAL (2015).Você matou meu filho!: homicídios cometidos pela polícia militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional.
BAUMAN, Zygmunt. (2004) Amor Líquido. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar.
FOUCAULT, Michel. (2008) Segurança, Território e População. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes.
ZACCONE, Orlando (2015). Indignos da vida: a desconstrução do poder punitivo. Rio de Janeiro: Renvan.

*Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestranda em Sociologia e Direito pela UFF e apaixonada por filosofia.

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