(5/5/1902)

Quando eu me sento à janela
P’los vidros que a neve embaça
Vejo a doce imagem dela
Quando passa… passa…. passa…
.
N’esta escuridão tristonha
Duma travessa sombria
Quando aparece risonha
Brilha mais que a luz do dia.
.
Quando está noite ceifada
E contemplo imagem sua
Que rompe a treva fechada
Como um reflexo da lua,
.
Penso ver o seu semblante
Com funda melancolia
Que o lábio embriagante
Não conheceu a alegria
.
E vejo curvado à dor
Todo o seu primeiro encanto
Comunica-mo o palor
As faces, aos olhos pranto.
.
Todos os dias passava
Por aquela estreita rua
E o palor que m’aterrava
Cada vez mais s’acentua
.
Um dia já não passou
O outro também já não
A sua ausência cavou
Ferida no meu coração
.
Na manhã do outro dia
Com o olhar amortecido
Fúnebre cortejo via
E o coração dolorido
.
Lançou-me em pesar profundo
Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser n’este mundo
E mais um anjo no céu.
.
Depois o carro funério
Esse carro d’amargura
Entrou lá no cemitério
Eis ali a sepultura:
.
Epitáfio.
.
Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Uma jovem filha da melancolia
O seu viver foi repleto d’amargura
Seu rir foi pranto, dor sua alegria.
.
Quando eu me sento à janela
P’los vidros que a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa… não passa…
.
– Fernando Pessoa, no livro “Cancioneiro”. organização, introdução e notas Jane Tutikian. L&PM, 2011

** Capa da postagem – Foto Carius, Karl-Eckhard, CC BY 3.0 – A escultura resultou de um projeto de educação artística, realizado por 24 alunos em um grupo de trabalho artístico liderado pelo escultor e professor Karl-Eckhard Carius, na Escola Alemã de Lisboa

SOBRE O LIVRO revistaprosaversoearte.com - Quando ela passa - Fernando Pessoa
Esta edição, organizada por Jane Tutikian, apresenta ao leitor os poemas assinados por Fernando Pessoa com seu próprio nome e que foram publicados esparsamente em periódicos. A escolha de “cancioneiro” para este conjunto de poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista, não é aleatória: cancioneiro é o nome dado ao conjunto de poesias líricas medievais, portuguesas ou espanholas, fortemente ligadas à música, ao canto e à dança. As poesias do “Cancioneiro” pessoano, por sua vez, estão ligadas à tradição lírica portuguesa, também têm um ritmo e uma métrica com grande musicalidade.
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FICHA TÉCNICA
Título: Cancioneiro
Páginas: 175
Formato: Digital – Ebook (kindle)
Lançamento: 28/11/2007 (1ª edição)
ISBN: 978-85-254-1037-5
Selo: L&PM
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