quinta-feira, outubro 10, 2024

Primavera em Russo – Mariana Imbelloni Braga

Vezes sem conta tenho vontade
de que nada mude
meiavoltavolver
mudar é tudo que pude
– Leminski

– “Apesar de nascida no outono, seu sonho seguiria sendo ser pura primavera”. Li outro dia e pensei em você. Gosta?
– Esta frase não faz nem sentido.
– No entanto, é bonita. E a pergunta foi, gosta?
– Que importa a estética, você sabe que acho ela particular. Se não houver um sentido além do estético, para mim, não há sentido algum.
– Se a sua estética é particular, o mero fato de eu achar bonito é porque já dei um significado, não?
– Então você precisa reconhecer o porquê de achar especificamente essa frase bonita. Que estética é essa? Não basta dizer “acho bonita” e por isso há um significado. Isto não faria sentido. Já conversamos muito disso.
– Se conversamos, se conversamos! Mas não quero entrar nessa discussão. Quero falar da frase. Para mim ela faz sentido, para além de haver ou não sentido na sua estética.
– Antevejo já o sentido que você vai me dar: é você que, nascida no outono, sempre se sentiu um pedaço perdido de primavera. Como se você pudesse espalhar flores por um mundo cinza e perdido. Mas o mundo não é tão outonal assim, minha cara, nem você tão primaveril.
– Nunca achei o mundo outonal. Essa era a sua metáfora, não a minha.
– Ah, claro, esquecemos de incluir na partilha dos livros e dos fins de semana das crianças a cláusula das metáforas, para separar as minhas das tuas e restringir o uso das nossas para momentos propícios.
– E por acaso haveria um momento propício para as nossas? Sempre que me aventurei a usá-las você me acusou de buscar através delas resgatar outros tempos, e agora só me sinto bem para usá-las dentro da minha cabeça, pois metafóras, suas, minhas, nossas, dos outros, sempre foram minha forma melhor de entender o mundo.
– Mas as metáforas não traziam, ao fim e ao cabo, os outros tempos?
– E o que não traz? Meus outros tempos, não só os nossos, veja bem, mas tudo que é “passado” me acontece de reacontecer o tempo todo. Mas já entendi que não posso falar no assunto, todo vivido deve ser calado em bem do presente, seja lá o que presente for. Não falo mais, fique tranquilo.
– O problema não é falar. Bem ou mal estamos sempre falando do passado. É como você fala. É que você é sempre tão óbvia.
-Sou? Não sei, talvez seja. Talvez enfim seja óbvia, eu que tanto quis ser primavera. Quis ser tanta coisa, aliás. Ser inteligente, ser amada, ser metafórica, ser sua. Provavelmente porque ser é verbo grande demais para o deixarmos ser intransitivo.
– De novo uma frase bonita e sem sentido para os seus biógrafos?
– Se para você nada disto faz sentido, não entendo porque me ligar para de novo discutir verões e primaveras.

– Não liguei para discutir nem verões nem outonos e muito menos primaveras. É você que vem com suas frases e metáforas. Mas bem, se quer um ponto, eu vou a um ponto. Ontem encontrei a sra F… nossa vizinha. Lembra dela? Lembra de como ela cantava de manhã fazendo o café e acordava as crianças? Lembra do cheiro de peixe frito que empesteava a casa e grudava nos seus livros a cada novo dia de feira? Lembra quando as sacolas do mercado dela arrebentaram e ela sentiu-se velha demais para buscar seus legumes escadas a baixo e quando saímos havia impossíveis beterrabas e melões espalhados pelas escadas do prédio? Lembra? Diga que lembra. Você precisa lembrar. Se você não lembrar deixa de ter existido porque a lembrança será só minha e uma lembrança não compartilhada e como um conto que você escreve que um dia talvez alguém leia. Você precisa lembrar porque ontem eu encontrei a sra. F… e ela está no inverno, mas tão no inverno que eu também fiquei cinza.
– A memória é sempre um conto que a gente conta, mesmo que seja em múltipla autoria. E o inverno dela já se pronunciava há tempos. Pelo próprio peixe que fritava no óleo da semana anterior, pelas frutas que rolavam escada abaixo. Já a conhecemos em fins do seu outono, não entendo seu choque com a superveniência inevitável desse inverno, nem porque esse cinza fez com que me ligasse.
– A sra F… era, não sei explicar, era mais que uma metáfora, era mesmo uma parte de nós. Um monumento em praça pública de todo aquele tempo. E a sra F… está morrendo.
– Veja esse mundo de hoje, já não se pode confiar nem nos monumentos. Eles viram pó às vezes, antes da gente.
– Nunca entendi porque você metia poesia em todo meu cinismo, mas teimava em ser cínica quando eu chegava a algum lugar poético.
– Você sempre achou que era para implicar, mas nem era. É que poesia ou cinismo demais, os dois enjoam.
– Não importa, francamente, não importa, porque não posso mudar de assunto agora, senão não volto mais e este telefonema ficará mais sem sentido ainda. A sra F… está morrendo, e semana passada deixei cair o cinzeiro que comprei para a casa que um dia teríamos em minha primeira viagem, e ele se espatifou irreparavelmente, e essas duas coisas juntas parece que me tiraram do chão, sabe. Não é bem para falar do passado que eu liguei, então, mas para saber que ele ainda é chão para o presente. Só preciso saber disso. Que há um monumento na praça para saber que já passei por essa praça.
– Mas a praça muda conforme você muda o monumento de lugar. Cada vez que um monumento se desfaz, a praça é outra. Mesmo o passado muda, quando a gente caminha nele vindo de novas partes. Por isso não vejo mal em falar dele. O passado é sempre novo. O passado se movimenta mais que o presente.
– Não, não. Pode se ressignificar, concordo. Pode se narrar de outra forma, concordo. Mas ainda assim, estará simplesmente se mudando o ponto de vista sobre algo por si estático. De quantas formas diversas descrevermos um monumento, ele será sempre o monumento, entende?
– Ah, meu caro, você não entendeu que não se pode confiar nos momumentos. Todos se desfazem. Só demoram mais no seu lento desmoronar. Eu sei disso porque outrora quis ser monumento e também me desfiz.
– Não, você não se desfez. Eu diria que mudou de significado. Te olho e vejo outra coisa, em outra praça. Mas ainda basicamente sólida.
– Quem me mudou de significado foi você. Eu me desfiz e espalhei pedras por todo meu mundo conhecido. Quem diria… você, então, no fim das contas, buscava monumentos?
– O que fizemos senão construir momumentos com os quais depois tivemos que lidar? A família que de fato tivemos e aquela que só sonhamos. As viagens que fizemos e aquelas que planejamos mas nunca tivemos tempo e dinheiro para tal. A sra. F… e tudo que nos cercava, nós passamos cimento em torno de tudo para algo nos sustentar no nosso outono.
– São esses os monumentos nos quais você quer se apoiar? Mas não vê que eles existirão enquanto você os ver assim cimentados?
– Eles estavam lá, até ontem, de verdade, não era só eu que os via.
– Nossos filhos, tanto os que tivemos quanto os que sonhamos, já passaram, eles, por sucessivos invernos e verões, transformaram-se irrecorrivelmente. As estações nos outros se sucedem, sempre. Podemos reter a sra F… como a da fotografia do dia do aniversário de 5 anos da Liz, de avental no meio da festa, cheirando a peixe frito, porque era quarta e tinha ido à feira, trazendo uma compota de doce de figo de Minas e feliz. Ou ainda de antes, quando não deixava rolar melões pelas escadas e recebia um sobrinho barulhento e nós nem ligavamos porque não tinhamos filhos que dormissem e eramos tão ruidosamente felizes que queriamos que o barulho da vida entrasse por todas as janelas e explodisse na gente. Nenhuma delas é a sra. F… e todas são. São estações da sra. F… que acompanhamos. Não sei quem é a sra. F…
– A sra F… não estar mais no apartamento de cima não é só um apartamento vazio. Não importa quem era a sra F… É que ela não estando lá, esse mundo não existe mais. Mesmo.
– Mas já não existia antes. Já não existia quando a sra. F… deixou de nos dar compotas de doces porque não existia mais um nós, no entanto ela trazia para mim uma lata de goiabada. Isso já era um novo universo que se criava, apesar de haver eu, você e uma sra F… Já não existia aquele mundo, quando eu fiz as malas e parti, e você nem soube porque não estava lá, nem descobriu tão cedo, porque continuou me vendo onde eu não estava, porque só olhava para seus deslocamentos. Já não existia quando as cinzas do meu cigarro mentolado encontraram outro cinzeiro, e o seu cinzeiro virou objeto de decoração porque você nunca gostou que fumassem perto de você mesmo.
– Existia. Juro que existia. De alguma forma esse passado era solo. Eu sei disso porque era solo e desde ontem estou caindo.
– Então não é só a sra. F… e seu inverno?
– Não, é tudo. É o mundo. O mundo está diferente. Há pouco era o nosso mundo. Agora não sei de quem é.
– É nosso e é deles, quem quer que sejam eles. Se mudamos tanto nesses anos, por que não podia o mundo mudar-se também?
– Eu sou a favor de mudanças, você bem o sabe, e não use esse tom que você usa com crianças e com seus alunos.
– Você é a favor que você mesmo mude, é diferente de ser a favor de mudanças. E o tom é vício profissional.
– Que adianta falar de mudanças quando você se repete o tempo todo? No meio da conversa se torna propositalmente enigmática e professoral.
– Não me tornei enigmática nem professoral. Se é para falar de enigmas, essa conversa é um enigma em si e há tempos não resgato tantas metáforas juntas.
– Como se você não gostasse disso, não tivesse sempre gostado dessa confusão de imagens que nenhum dos dois saberia dizer ao certo o que significa.
– Entendo… sim, agora entendo… foi para isso que você ligou. Para se convencer de que, em última análise, eu não mudei, e que também a sra F… será sempre a sra F… que cheirava a peixe todas quartas-feiras, e que ainda há alguém, em alguma parte, que deixa seus legumes espalhados pelas escadas. Porque só se tudo isso for verdade você poderá continuar em paz seu curso de mudanças, pois eu e a sra F… manteremos o universo em ordem.
– Não, não é isso. Eu não devia ter ligado para você.
– No entanto, ligou, porque quando você espalhou cimento pelo mundo, eu fiquei feliz. Eu queria ser monumento. Eu teria sido, se alguém pudesse ser. O problema é que depois que todos viramos monumentos, você continuou seu outono. Não se pode ser monumento no outono alheio.
– O meu outono foi sempre outono. Eu não quis te impingir meu outono. Eu adorava sua primavera.
– Justamente, você adorava a primavera que fez dela um quadro para se colocar na parede. Mas era para ser um quadro estático, não uma espécie de Dorian Gray que mudasse contigo. Era para seu outono poder aprofundar-se outonalmente, ciente de sempre haver uma primavera na parede para dar um referencial de estação.
– Você diz ao mesmo tempo que eu sou sempre outono, mas que era um erro querer te ver sempre primavera?
– Mesmo a primavera se transforma em si. A questão não era essa, era? Você transformou-se dentro do seu outono o quanto pode. Passeou por milhares de estações. Eu te conheci outono, mas te vi afundar em profundo inverno, depois bricar de verão. Te vi ser tantos e sempre buscando o canto onde poderia, enfim, de novo ser uno.
– Então não entendo, não entendo onde joguei o cimento, se eu mesmo passei em tantas temperaturas diversas.
– Você passeou por tudo isso, mas nunca quis que primaveras se desenrolem em inverno, nem que a sra F… acabe seu ciclo de estações. Só seu outono pode ir, voltar, seguir. Embora você raramente assuma esse outono, ele é seu chão, para onde você pode voltar. Porque o mundo seria bem repartido: eu sempre primavera. Você sempre outono. A sra. F… sempre perdida entre compotas e peixes.
– Não foi para falar de outonos que eu liguei. Nem de primaveras. Só queria o chão. Mas devia saber que há bastante tempo você não é chão.
– Ninguém é chão. A questão não sou eu, muito menos a sra. F… Talvez seja seu outono. Talvez seja mesmo o mundo que tenha vindo agora com um novo ciclo de estações.
– Você coloca as coisas de uma forma tão banal, apesar de toda essa poesia. Não sei porque continuar essa ligação. Mas não consigo desligar.
– Sabe por que você não desligou ainda? Porque esperava que eu diga que já está muito tarde, que eu tenho sono, que vamos acabar acordando as crianças, que amanhã eu trabalho cedo, quer que eu diga qualquer coisa que te remeta a um tempo em que a sra. F… fritava peixes e assim você possa ficar em paz porque o mundo está em seu eixo. E se o mundo estiver em seu eixo, você pode questionar seu outono, você pode, quem sabe, afundar em um inverno, ou talvez inverter a roda e surpreender a todos com um verão. Pode até ser outro outono. Pode até ser primavera. Também gostaria de ter alguém para quem ligar, que me garantisse essa ordem do universo, garantir que posso brincar na corda bamba, que do chão não passo. Mas não tem mais crianças, nem uma compota na geladeira, nem um trabalho essencial que me espere pela manhã, nem existe nenhuma permanência no universo para tranquilizar-nos. A Liz dorme na casa do namorado, a sra F… está morrendo e não pode mais ir até a feira e eu estava acordada quando você ligou tentando aprender russo para, quem sabe, poder dizer primavera em russo, porque essa é minha permanência, a única que eu conheci, contas feitas. Minha tentativa tantas vezes infrutífera de ser primavera. Isto é tudo que posso te oferecer para fingir, ou admitir, ou não sei o verbo, que há algo em que se fiar. Primavera em russo. Depois em búlgaro. Depois, não sei. Primavera em russo.
– Talvez seja isso. Talvez não seja. Mas te ouvir falar assim é tão diferente. É tão inconclusivo. Seus pontos finais ajeitaram tanta coisa em outros tempos. E agora, nem a primavera pode mais ser primavera e ponto.
– Nunca pode, provavelmente. Nós que achavamos que haviamos encontrado o significado absoluto, a forma certa de dizer.
– E como se diz, afinal, primavera em russo?
– Ainda não aprendi. Mas vê, no final, aquela frase fazia algum sentido.

Mariana Imbelloni Braga, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em História pela UFF, em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Direito pela PUC-Rio, dedica-se desde 2009 aos estudos de gênero nas duas áreas.

Leia outras colunas da autora:
Mariana Imbelloni Braga (Colunas e poesia)


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