Valter Hugo Mãe - foto: Lela Beltrão
Durante muitos anos, vivemos sozinhos no cimo de um monte onde apenas estava a nossa casa, doze árvores e muitos pássaros. Tínhamos um cão e ele gostava de ladrar só de estar feliz, ou então era um bocado maluco, porque ladrava sem motivo enquanto fazíamos o nosso trabalho.
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Durante muitos anos, eu, a minha mãe e o meu pai vivemos nessa casa no cimo de um monte mais ou menos afiado que custava subir e descer. Explicaram-me que a nossa tarefa era ver ao longe, e eu via ao longe sem saber o que esperar e esperava que um dia pudesse entender melhor porque tínhamos de o fazer.
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Víamos distante uma estrada muito estreita que serpenteava nos montes vizinhos, aparecendo num lugar e depois desaparecendo, surgindo mais adiante como vindo à tona do verde intenso da vegetação. Um oceano de ramagens. Víamos como passavam uns poucos carros, tão de vez em quando, e como havia gado que os pastores enfileiravam por ali para chegarem aos pastos a engordar de erva.
Os montes vizinhos eram mais cobertos do que o nosso, que parecia careca, assim sem cabelo por ter apenas doze árvores. Estava a nossa casa ali pousada, na careca do monte, como um pequeno chapéu. Eu até imaginava que o nosso monte, ali abaixo de onde estávamos, teria uns olhos e uma boca para ser uma cabeça toda catita a fazer o mesmo que fazíamos nós, ver ao longe.
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Víamos como chegava o sol e depois como partia. Como fazia para se erguer de um lado, ali arregaçado de entre o fundo distante da pedreira, e como seguia o dia inteiro para se ir meter quase pelo riacho adentro. No verão, o sol acertava sempre no riacho, parecia até que se ia refrescar.
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Eu pensava se estaríamos ali para tomar conta do sol. Para saber se ele fazia o seu caminho sem se enganar ou sem cair mais depressa do que o devido. Perguntava se estaríamos ali para tomar conta do tempo, para que não fosse mais pequeno nem fosse maior do que devia.
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Em certas alturas, eu, a minha mãe e o meu pai sentávamo-nos lado a lado a trabalhar nisso de ver o longe. Todos os três observávamos como estavam as paisagens calmas e como se ouvia o silvo pequeno do vento e o marulhar das folhas. Conversávamos devagar, por não ser importante fazer as coisas à pressa nem falar.
Os três sentados na atenção serena que prestávamos, e o meu pai podia cantar uma canção, de vez em quando, porque o declive do monte parecia pôr-se de caminho para o som e a voz crescia. Eu já sabia do eco e da reverberação. A voz do meu pai agigantava-se pelos montes fora e era afinada, tão segura quanto delicada.
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A minha mãe cantava também, e eu ouvia e achava que o longe que ali víamos ficava mais perto assim. Porque lhe chegávamos pela voz, planando pela voz até aos lugares menos nítidos da paisagem.
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Mas era em silêncio que mais vivíamos. A deixar que fossem as plantas e os bichos a terem pelo vento partículas de conversas viajando.
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Quando se vive num silêncio tão grande, a tomar conta de algo tão distante, aprende-se a ver melhor. Aprende-se a ver pela cor das coisas, pelo movimento e até pelos odores o que pode estar a acontecer.
Sabíamos sempre muito bem da tempestade, e distinguíamos muito bem a tempestade das chuvas mais fracas e nunca nos enganávamos com os ventos frios de primavera, que eram passageiros e aqueciam se nos puséssemos ao sol.
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Aprendemos a perceber como os rebanhos trepavam pelas encostas e sabíamos a quem pertenciam, ainda que fosse tão raro estarmos com outras pessoas. E, pelo movimento do rebanho e o tempo que levava a subir ou descer a encosta, percebíamos se estava maior ou mais pequeno, se a fome ou os negócios tinham obrigado ao abate do gado.
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Era um trabalho muito difícil porque, enquanto vigiávamos algo num lugar, podia acontecer noutro o que o meu pai queria saber, e ele sempre perguntava o mesmo, se eu vira gente, quantas pessoas, se vinham a pé, se tinham carro ou motocicletas, se faziam barulho ou diziam palavras mais aos gritos e se eu havia ouvido o que diziam.
Eu tinha sempre dificuldade em separar o que não importava do que era fundamental para o nosso trabalho. Por isso, tanto memorizava coisas tolas como podia esquecer outras tão preciosas. O meu pai, no entanto, parecia ser paciente e ter tempo para esperar. Como se esperasse que o trabalho, num dado momento, estivesse completo para sempre e não precisássemos mais de trabalhar. O que era o mesmo que não precisarmos mais de viver ali, julgava eu.
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Eu sabia que um dia teria de ir à escola, estava a chegar à idade e a minha mãe já tinha descido monte abaixo a avisar uns senhores de que era preciso que a carrinha das crianças fosse parar ao pé de nós.
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Significava que eu teria de descer a nossa encosta por mais de meia hora até ao carreiro e depois meia hora até à estrada onde a carrinha devia passar todos os dias a um momento certo.
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A minha preocupação ali por aqueles dias, antes de ir estudar, era a de saber se o nosso trabalho não ia ficar descurado. Quem faria a minha parte de ver ao longe a medir os humores da paisagem?
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O nosso cão pôs-se ainda mais esquisito, parecia entender alguma coisa e ladrava em meu redor a protestar ou a avisar-me não sabia eu de o quê.
A minha mãe enxotava-o a ver se ele ia brincar com a passarada. O pobre do bicho, como sempre vivera ali no pico do monte, tinha mais de céu dentro da cabeça do que de terra. Talvez julgasse que voava e que entre ele e os pássaros a diferença estava apenas na cor. Às vezes corria muito e dava uns saltos tão altos para os apanhar, até nós achávamos que o maluco do cão ia aprender a voar.
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Preocupados ou não, os meus pais explicaram-me que o meu tempo de ir à escola era o mais importante de todos e que, dali em diante, seria esse o meu trabalho principal. Olhei para os nossos bancos. Olhei para longe e imaginei como mudariam as minhas tarefas, tanto me parecia que tinha ali tudo quanto precisava.
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Quando a carrinha chegou, vinha com três crianças de lugares ainda mais afastados. Não foram, é claro, as primeiras crianças que vi, mas eu não estava habituado a ter crianças por companhia. De todo o modo, nos montes, todos nós, mesmo antes da idade da escola, já tínhamos muito trabalho para fazer e brincar era quase uma ideia esquisita.
Na escola, sentados em mesas pequenas, com um caderno e um lápis para copiar letras e números, éramos oito alunos e a professora. Ela dizia-nos que a letra A pode ser linda, pode ser má, já se cá vê que há tal letra no que começa e no que finda.
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A nossa professora, como vinha da cidade, explicava que por cada árvore do monte havia uma casa na cidade. E que, por cada pássaro ou insecto, havia gente nas ruas. Eu pensei que difícil seria o trabalho do meu pai, que tem de estar atento ao que fazem as pessoas pela paisagem, se tivesse uma paisagem de tanta gente.
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Ainda havia sido uma sorte que nos tivesse calhado viver no cimo de um monte tão especial e ter por tarefa ver ao longe e tomar conta de um tão grande sossego.
Um dia, pediu-nos a professora que falássemos sobre o nosso trabalho. Nós, as crianças que, entre os lápis e cadernos mais as brincadeiras de recreio, ainda voltávamos a casa na carrinha, com a pressa possível, para ajudarmos os nossos pais.
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Eu expliquei como me sentava nos bancos, virado ora para sul, ora para norte, e expliquei que a paisagem mudava de cores e movimentos, tinha ruídos grandes e outros discretos e que havia que saber para onde olhar. Depois, expliquei que o mais importante era perceber o que acontecia longe, lá onde ficavam os montes mais isolados e aonde quase ninguém ia. O meu pai dizia que se houvesse o azar de um incêndio nesses montes podia arder quase o mundo inteiro, porque o tempo seria pequeno para trazer água antes que o fogo alastrasse.
Expliquei à professora que na sala de aula tudo era perto e que nada se distanciava de nada como nos montes da paisagem. Mas a professora negou. Disse-me que o rosto de cada um também era imenso como a paisagem e, visto com atenção, tinha distâncias até infinitas que importava tentar percorrer.
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Nesse dia voltei da escola como se tivesse a tampa da cabeça aberta e os pensamentos me fugissem para o vento.
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Pus-me a olhar para o meu pai a ver se no seu rosto havia algo que se comparasse ao afastado dos montes, o verde mudando, as encostas apenas cobertas pela luz do sol, o arvoredo como um tapete que parece rasteiro.
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Pus-me a olhar para o rosto do meu pai à procura do que fosse distante, quando parecia que o rosto de uma pessoa tinha tudo tão à flor da pele.
Quando o nosso cão parou de ladrar, trouxe-o para junto de mim e encarei-o atento. Com a excepção da distância do nariz em relação aos olhos, eu não sabia como entender o que me dissera a professora nem havia nada de paisagem na expressão de alguém.
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Mas a professora sabia melhor do que eu e decidiu sentar-me na escola no sentido contrário ao dos meus colegas. Sentou-me na sua mesa, enquanto ela andava a pé a escrever e a apagar coisas no nosso quadro.
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Fiquei de frente para as sete crianças que estudavam comigo. Sete rostos que, com mais ou menos sono, maior ou menor fome, acatavam os ensinamentos da professora como podiam.
Subitamente, enquanto fazia também as minhas letras — e eu desenhava já muito bem todas as vogais —, percebi que uma menina se distraíra a ver nada. Via nada como se fosse alguma coisa. Tinha o rosto parado e apontado para o tecto e, embora de olhos abertos, ficava estranha, como se adormecida. O rosto dela, ali todo à flor da pele, pareceu-se realmente com o distante da paisagem. Veio à sua expressão uma lonjura que impossibilitava, a quem a visse, perceber com nitidez o que lhe passava no seu pensamento.
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Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.
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Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa obriga a um esforço como o de estarmos sentados nos nossos bancos a tomar conta do que passa pelos montes. Percebi que ver verdadeiramente uma pessoa também é como prevenir os fogos, como fazia o meu pai que, afinal, era guarda-florestal.
O rosto é mais turvo do que os céus e pode ser muito mais complexo do que saber exactamente de quem é um rebanho e se cresceu ou diminuiu. O rosto começa onde se vê e vai até onde já não há luz nem som. Por isso, por mais que observemos, ainda muita coisa nos há-de escapar e o importante é que estejamos tão atentos quanto possível para nos conhecermos uns aos outros.
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Conheci melhor o meu pai. Conheci melhor a minha mãe. Até conheci melhor o nosso cão, que era mesmo maluco, porque lho via no rosto e tudo. Entendi que o rosto é extenso e infinito, capaz de expressões que vamos conhecendo e outras que nunca vemos. Toda a vida precisamos de estar atentos, se assim não fizermos vamos perder muito do mais importante que acontece em nosso redor. Como se houvesse um incêndio mesmo diante de nós e nem sequer o percebêssemos antes que restem todas as coisas completamente queimadas.
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– Valter Hugo Mãe, no livro “Contos de cães e maus lobos”. [ilustração Alex Cerveny; prefácio de Mia Couto]. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2019.
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