quinta-feira, outubro 10, 2024

‘O preconceito é filho da ignorância’ – Jelson Oliveira

“[…] uma sociedade que se sustenta pela ameaça da exclusão, ainda que velada, daqueles que não seguem seus ditames, sem que esses correspondam às necessidades individuais racionais, e sem que lhes proporcione uma vida sem ameaças, gera continuamente a necessidade do estabelecimento de preconceitos como forma de defesa individual.”
– José Léon Crochík. “Preconceito, indivíduo e cultura”. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006, p. 36.

“O preconceito, doença que turva nosso olhar e entorta nossa alma, que nos diminui e emburrece, é uma das enfermidades mais sérias deste nosso mundo”
– Lya Luft, no ensaio “Múltipla Escola”. Rio de Janeiro: editora Record, 2010.

“Apenas posso dizer que os preconceitos nascem na cabeça dos homens. Por isso, é preciso combatê-los na cabeça dos homens, isto é, com o desenvolvimento das consciências e, portanto, com a educação, mediante a luta incessante contra toda forma de sectarismo. Para se libertarem dos preconceitos, os homens precisam antes de tudo viver numa sociedade livre”
– Norberto Bobbio, filósofo italiano, no livro “Elogio da Serenidade”. São Paulo: Editora Unesp, 2011.

“É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos”
– Theodor W. Adorno, na obra “Educação e Emancipação”. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1995.

Eis o artigo do professor Jelson Oliveira*

‘O preconceito é filho da ignorância’ 

Quem tem preconceito é portador de uma deficiência terrível. Falta a ele a condição básica da vida ética: a capacidade de gerar um conhecimento a respeito do mundo. O preconceituoso, por isso, sofre de uma atitude antifilosófica por excelência: ao invés do pensamento crítico, ele dá lugar à ignorância e orienta-se por uma distorção da realidade de tal gravidade que o leva a projetar sobre os outros os estereótipos criados por sua mente doentia, em oficinas escuras e fétidas, onde escorrem os piores venenos que vertem da civilização. “Negro é assim”, “gay é assado”, “mulher faz isso”, “homem não faz aquilo”: essas e outras expressões fazem parte do vocabulário cotidiano desses doentes, cuja enfermidade nasce da ignorância e do obscurantismo que os impedem de acessar a verdade das outras pessoas, suas histórias pessoais, seus anseios e suas lutas cotidianas.

Esse tipo de gente, no geral forjada pelos programas televisivos e pelas mensagens mortiças de grupos cujo interesse é manter populações inteiras no seu cabresto moralista, parece incorporar e reimprimir nas atitudes cotidianas precisamente aquilo que mais nos envergonha enquanto seres humanos, aquilo que precisaríamos deixar para trás quando se trata de organizar a nossa vida social orientados pelo respeito à dignidade da pessoa humana. Afinal, o grau de respeito de uma pessoa pela outra é o índice da lucidez e da justiça geral de uma sociedade.

Conforme afirmou o filósofo Adorno, uma sociedade emancipada não aceita o preconceito quando ela é capaz de efetivar os ideais universais na reconciliação das diferenças, ou seja, nas práticas cotidianas de pessoas que se encontram coabitando um mesmo mundo, embora preenchidas por ideias e ideais díspares. Considerar positivamente essa situação é o primeiro caminho para uma convivência pacífica, pela qual cada ser humano encontra no meio social as condições para se desenvolver plenamente. E isso depende, obviamente, do direito que cada um tem de ser visto pelo outro o mais próximo possível daquilo que ele realmente é, para além de todos os estereótipos, que são atributos fixos usados em substituição à verdade de cada indivíduo.

O estereótipo escraviza e enjaula o ser humano em opiniões alheias a eles mesmos e, quanto a isso, não há nada mais contrário ao ato de filosofar, ou seja, alimentar a liberdade de cada sujeito em relação à sua própria história. Por isso, não há coisa mais avessa à filosofia do que o preconceito e, mais, se há um lugar de onde ele deveria ser banido em definitivo é na filosofia, pois todo agir fixo, orientado por padrões e rótulos que são projetados sobre o outro, acaba por impedir o processo reflexivo e crítico, que são requisitos básicos do ato de filosofar.

Onde há preconceito não há atividade reflexiva, porque o preconceito se alimenta da ignorância e da distorção, da deficiência, do engano e da pobreza intelectual. E isso tudo, na maioria dos casos, como resultado das necessidades psíquicas do próprio sujeito preconceituoso, que ao projetar sobre os outros seus estereótipos vexatórios, mal esconde o seu medo de se colocar diante do outro, de expor-se às suas demandas e modos de ser. Ele quer expulsar da própria consciência tudo o que é considerado ameaçador e, como medida de segurança contra os temores que são seus, tenta adaptar o outro, limitando-o às “caixinhas” que ele mesmo construiu para si.

O preconceito, por isso, nega o uso autônomo da razão e não é mais do que um sintoma subjetivo da irracionalidade objetiva que ele projeta na forma desses estereótipos. Ora, se o conceito nasce do estudo, do conhecimento e do interesse pelo objeto ou a pessoa que se apresenta como tema, o pré-conceito é uma aversão à experiência do outro, uma recusa de reconhecimento, uma negação da alteridade que, no geral, acaba na violência, como uma espécie de ato contínuo pelo qual é preciso destruir aquele que, diante de si, sendo desconhecido e indesejado, é gerador de incômodo e mal-estar. É o que está posto na própria origem etimológica da palavra preconceito: “praejudicium”, em latim, corresponde a um prejuízo que afeta, primeiro e de forma mais grave, a vítima, mas também o seu algoz. Não à toa, o preconceito tem sido o perigoso combustível da intolerância que continua levando a humanidade a guerras cruéis e insanas contra si mesma.

Nesse caso, uma alternativa urgente é rever os nossos processos educativos, de forma a evitar que a educação acumule técnicas de adestramento, para fazer dela um instrumento de liberdade, mobilizadora da reflexão crítica e do afeto, capazes de nos aproximar do outro com interesse. Nunca o lema iluminista foi tão atual: “Sapere aude”, ou seja, “tenha coragem de usar sua própria razão”. Está mais do que na hora de a educação nos ajudar a vencer as ideias preconcebidas, recebidas sem crítica, como aceitação adesiva e postiça de ideias alheias. Isso não é outra coisa que ignorância, presunção de saber e jactância cuja epidemia exige, de novo, a intervenção dos médicos da cultura.

* Jelson Oliveira é professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR e co-autor do livro Diálogo sobre o tempo (PUCPRess, 2015).

** Artigo originalmente publicado Maluco Beleza/ Bem Paraná

“O diferente parece ameaçador: queremos preservar nossa individualidade, tememos que o outro nos prejudique. O que eu não entendo, o que não é igual a mim, seja na cor, no formato dos olhos, na cultura, nas origens, na profissão e nos afetos, desperta minha hostilidade irracional”
– Lya Luft, no ensaio “Múltipla Escola”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

“O ser humano não nasce preconceituoso. Ele desenvolve isso no hábito cultural. O conhecimento dá a possibilidade de superação desse preconceito e dessa discriminação. Há vários personagens da história recente que sofrem preconceito”
– Fábio Medeiros (professor de sociologia).


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