terça-feira, dezembro 3, 2024

‘O pensamento crítico morreu’, afirma o filósofo italiano Franco Berardi

“A possibilidade de futuro passa por estarmos abertos ao imprevisível”

A trajetória de Franco Berardi é no mínimo eclética. Na década de 60, ingressa no grupo Poder Operário, quando estudava na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha, onde se licenciou em Estética. Em 1975, funda a revista “A/Traverso”, que se transforma no núcleo do movimento criativo de Bolonha, e centra o seu trabalho intelectual na relação entre tecnologia e comunicação. Em finais da década de 70 exila-se em Paris e, posteriormente, ruma a Nova Iorque. Quando regressa a Itália, em meados dos anos 80, publica o artigo “Tecnologia comunicativa”, que preconiza a expansão da internet como fenómeno social e cultural decisivo. Com vasta obra publicada, o filósofo italiano e professor de História Social dos Media na Accademia di Brera, em Milão, continua a refletir sobre o papel dos media e da tecnologia de informação no capitalismo pós-industrial, a precariedade existencial e a necessidade de repensarmos “o nosso futuro económico”.

Entrevista* concedida à Ana Pina/O jornal Económico (Portugal).

Leia trechos da entrevista com o filósofo italiano Franco Berardi:

O acrónimo inglês TINA – There Is No Alternative [não há alternativa] – é usado recorrentemente para justificar a necessidade de trabalhar mais e de aumentar a produtividade. Na sua opinião, não há mesmo alternativa?

Esse tem sido o discurso dos líderes políticos nos últimos 40 anos, desde que Margaret Thatcher declarou que “a sociedade não existe”. Existem apenas indivíduos, empresas e países competindo e lutando pelo lucro. É este o objetivo do capitalismo financeiro. E com esta declaração foi proclamado o fim da sociedade e o início de uma guerra infinita: a competição é a dimensão económica da guerra. Quando a competição é a única relação que existe entre as pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de chegada’, o culminar do processo. Penso que, em breve, acabaremos por assistir a algo que está para além da nossa imaginação…

O que pode pôr em causa o capitalismo financeiro? Enfrenta alguma ameaça?

A solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro. Mas atenção, não acredito numa vontade maléfica. O que me parece é que os processos tecnológico e econômico geraram, simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação tecnológica digital da presença do outro. Nós desaparecemos do campo da comunicação porque quanto mais comunicamos menos presentes estamos – física, erótica e socialmente falando – na esfera da comunicação. No fundo, o capitalismo financeiro assenta no fim da amizade. Ora, a tecnologia digital é o substituto da amizade física, erótica e social através do Facebook, que representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso “consertar o Facebook”. O problema não está em “consertar” o Facebook, mas sim em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.

O pensamento crítico pode ajudar a “consertarmo-nos”?

Não há pensamento crítico sem amizade. O pensamento crítico só é possível através de uma relação lenta com a ciência e com as palavras. O antropólogo britânico Jack Goody explica na sua obra “Domesticação do Pensamento Selvagem” que o pensamento crítico só é possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e repensar o que lemos para podermos distinguir entre o bem e o mal, entre verdade e mentira. Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso, assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo material para pensarmos de uma forma emocional e racional. Ou seja, o pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem dar-se ao luxo de ter tempo e de pensar.

Como vê o papel dos media e das redes sociais nos tempos que correm?

Devo dizer que, nos dias de hoje, a expressão “media” não é muito óbvia. Remete para quê exatamente? Remete para o The New York Times (NYT) ou para o Facebook? Digamos que, neste último ano, houve uma disputa cerrada entre o NYT e o Facebook e foi este que acabou por vencer, porque o pensamento crítico morreu. E o pensamento imersivo está fora do alcance da crítica. A imersividade é, pois, a única possibilidade. Esta é outra questão relevante. Acredita que o Facebook pode ser ‘consertado’? Pessoalmente não acredito. Em tempos, eu e muitas outras pessoas acreditávamos que a Internet ia libertar a humanidade. Errado. As ferramentas tecnológicas não vão libertar-nos. Só a humanidade pode libertar-se a si própria. Voltando ao Facebook, como podemos defini-lo? O Facebook é uma máquina de aceleração infinita. E esta aceleração, intensificação, obriga a distrair-nos daquilo que é a genuína amizade.

Considera que as redes sociais padronizam formas de estar?

Sem dúvida. A nossa energia emocional foi absorvida pelo mundo digital, por isso as pessoas esperam que os outros “gostem” do que dizemos [nas redes sociais] e muita gente sente-se infeliz quando os seus posts não produzem esse efeito. Uma das consequências desse investimento emocional é o chamado ‘efeito da câmara de eco’, ou seja, tendemos a comunicar, a trocar informações e opiniões com pessoas que pensam como nós, ou que reforçam as nossas expetativas, e reagimos mal à diferença. Podemos chamar-lhe psicopatologia da comunicação. O futuro só é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na amizade, na solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de sentir empatia, o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos conferem humanidade.

Refere num artigo que o ser humano tem de abandonar o desejo de controlar…

Hoje em dia, o grau de imprevisibilidade aumentou de tal forma que pôs fim à potência masculina. O ponto de vista feminino, por seu turno, representa a complexidade, a imprevisibilidade da infinita riqueza da natureza e da tecnologia – não no sentido de algo oposto à natureza, mas como uma forma de evolução natural. Atualmente, só o ponto de vista feminino é que pode salvar a raça humana. O ponto de vista masculino já não é capaz de fazer o tipo de ‘trabalho’ de que fala Maquiavel: dominar a natureza. Isso já não é possível, por isso temos de libertar a produtividade da natureza e da mente humana, isto é, o conhecimento. Hoje em dia, o problema não está no excesso de tecnologia, mas sim na nossa incapacidade de lidar com a tecnologia sem ficarmos reféns do preconceito do poder, do controlo, da dominação. Temos de abandonar essa pretensão: a de controlar.

Subscreve as palavras de Keynes: “o inevitável geralmente não acontece, porque o imprevisível prevalece”.

Sem dúvida. E embora não seja meu hábito fazer sugestões, deixo esta: as pessoas devem estar abertas ao inesperado, ao imprevisível. Se olharmos para o presente, constatamos que a guerra, a violência, o fascismo são inevitáveis. Mas o inevitável nunca acontece porque existe o imprevisível. Ora, nós não sabemos o quão imprevisível as coisas podem ser, mas podemos estar receptivos ao imprevisível. Devemos estar atentos e procurar continuamente uma ‘linha de fuga’ para o inevitável, sendo que isso requer muito empenho, uma enorme energia e atividade.

*Leia a entrevista na íntegra no O Jornal Económico. (acessado em 28.6.2018)


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