SOCIEDADE

O olhar insubordinado, por Eliane Brum

Sobre a melhor profissão do mundo
O olhar insubordinado
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Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico. Usando o clichê da reportagem, eu sempre me interessei mais pelo cachorro que morde o homem do que pelo homem que morde o cachorro – embora ache que essa seria uma história e tanto. O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida é o extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir essa verdade, fazendo com que o milagre do que cada vida é se torne banal. Esse é o encanto de A vida que ninguém vê: contar os dramas anônimos como os épicos que são, como se cada Zé fosse um Ulisses, não por favor ou exercício de escrita, mas porque cada Zé é um Ulisses. E cada pequena vida uma Odisseia.

A proposta da coluna de crônicas-reportagens, construída no caminho, mais por intuição que por plano, era estimular um olhar que rompesse com o vício e o automatismo de se enxergar apenas a imagem dada, o que era do senso comum, o que fazia com que se acreditasse que a minha, a sua vida fossem bestas. A hipótese era a de que o nosso olhar fosse sendo cegado, confundido por uma espécie de catarata, causada por camadas de rotinas, decepções e aniquilamentos, que nos impedisse de ver. Vemos o que todos veem e vemos o que nos programaram para ver. Era, com toda a pretensão que a vida merece, uma proposta de insurgência. Porque nada é mais transformador do que nos percebermos extraordinários – e não ordinários como toda a miopia do mundo nos leva a crer.
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Essa elaboração é posterior. Eu só consigo ver A vida que ninguém vê porque vi o que havia de especial na coluna pelos olhos dos leitores. Comecei tateando, escrevendo sobre o que eu gostava, do jeito que eu gostava, com o olhar que era meu. Sem saber muito bem o que estava fazendo nem onde queria chegar. Foram os leitores que enxergaram a coluna e apontaram para onde eu estava olhando. Toda semana desembarcavam e-mails e cartas contando sobre vidas próprias, vidas de outros, desacontecimentos, não-fatos, antinotícias, anonimatos. Tudo absolutamente extraordinário.

Toda semana me alcançavam relatos que acabavam assim: “Descobri que a minha vida é especial. Mudou tudo.” Bastava o reconhecimento do outro, vindo de um lugar legitimado como uma página no jornal de sábado, para que músculos oculares atrofiados pela falta de uso voltassem a se exercitar para enxergar a própria vida de outros ângulos possíveis. Quem consegue olhar para a própria vida com generosidade torna-se capaz de alcançar a vida do outro. Olhar é um exercício cotidiano de resistência. Foi isso que os leitores disseram que eu disse a eles – e eu soube que era isso porque eles me contaram. Ao ver a minha escrita pelos olhos deles também eu me descobri extraordinariamente ordinária.
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Anos atrás, em 1993, eu refiz a marcha da Coluna Prestes, 70 anos depois. Nela, entrevistei o povo do caminho – os brasileiros que viviam nos povoados e nas cidades por onde o exército rebelde passou nos anos 20, o povo que os revolucionários queriam salvar das garras do governo Arthur Bernardes e o povo que não sabia que queriam salvá-lo. O mergulho de 44 dias pelo Brasil profundo – e invisível – me atingiu com a força das revelações que mudam a vida. Comecei a compreender o país. E a amar seu povo não com o coração, mas com o fígado. Isso me transformou não em outra, mas em mais furiosamente eu mesma.

Em 1999, ao trilhar as ruas de Porto Alegre, pelas quais tantas vezes eu tinha andado, o desafio era pisar sobre as mesmas pedras, mas olhar de outro lugar. Não é um truque banal, é uma alteração de foco que se faz em apenas um segundo e uma inclinação de alguns centímetros do pescoço, mas que resulta avassaladora. Um exemplo. O mendigo da Rua da Praia, estatelado no chão, barriga sobre a laje, havia 30 anos. Não sei quantas vezes passei por ele com pena e culpa. A vida que ninguém vê me impôs – e não foi fácil – curvar o pescoço, me agachar e colocar meus olhos no mesmo plano dos olhos dele. Dessa posição de igualdade, pude enxergá-lo. Bastou olhar para baixo para que Sapo pudesse me contar como era olhar para cima.
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Escolhi esses dois momentos – um em que precisei viajar 25 mil quilômetros e outro em que bastou mover o pescoço alguns centímetros – para mostrar que o olhar é o mesmo, é o que se recusa a enxergar apenas o que está programado, o que está na superfície. No primeiro caso, o que estava diante de mim para aplacar minha vontade de ver era a coluna mítica e o cavaleiro da esperança. No segundo, o mendigo que, quando reduzido apenas à miséria por uma retina viciada, em que a culpa é apenas a indiferença justificada, deixa de ser um igual. Em ambos os casos, ao romper com essa primeira camada enganadora, o que se encontra é não o herói, mas o homem – não o mendigo, mas o homem. Um milhão de vezes mais interessante e libertador.

Aqui faço um parênteses para o que se poderia chamar de a arte de olhar – ou uma campanha pela volta dos sapatos sujos. E o faço porque tenho a pretensão de que este livro seja lido nas faculdades de Jornalismo. Já é um clássico: Ricardo Kotscho, repórter que faz o posfácio deste livro, abismava-se com os colegas mais jovens que não desgrudavam da cadeira nem da redação e conheciam os entrevistados apenas pela voz no telefone. Cunhou o termo “reportagem externa”. O correspondente, no jornalismo, a “chuva molhada” ou “entrar pra dentro”. Ao mesmo tempo piada e denúncia de uma situação que arrancava os repórteres do único lugar em que deveriam estar – na rua.
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Humberto Werneck, outro grande jornalista, conta essa história no posfácio do Fama e Anonimato – do papa do new journalism, o americano Gay Talese. “A um colega, intrigado ao vê-lo abancado, quase todo dia, numa cadeira de engraxate na Alameda Santos, Ricardo Kotscho explicou:
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– É que eu preciso! Repórter que vai pra rua suja os sapatos.”
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É isso. Se o telefone e a internet são invenções geniais, não há tecnologia capaz de tornar obsoleto o encontro entre um repórter e seu personagem. Se isso acontece, é por distorção. Esse olhar que olha para ver, que se recusa a ser enganado pela banalidade e que desconfia do óbvio é o primeiro instrumento de trabalho do repórter. Só pode ser exercido sem a mediação de máquinas.
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Não pretendo fazer aqui uma análise sobre as razões dessa mudança que faz com que muitos repórteres só vejam a vida – e os fatos, as pessoas – pela tela do computador. Só diria ainda que aqueles que se dobram à nova regra não-escrita são tão facilmente substituíveis – porque descartáveis – quanto os componentes eletrônicos das máquinas que elegeram para intermediar seu olhar sobre o mundo. E os primeiros a ser deletados numa das cíclicas crises das empresas de comunicação – porque deletaram antes a sua singularidade.

Essa é uma época de incontinência verbal. Não sei se as pessoas falavam tanto assim antes. Sempre me surpreendo com a capacidade que muitos têm de preencher todo o tempo e o espaço com palavras, muitas vezes sem dizer nada. Sempre penso: o que aconteceria se por um momento elas silenciassem? Qual é a ameaça contida no silêncio? Ou qual é o som que não suportamos ouvir para precisar cobri-lo com o ruído ininterrupto de nossa voz? Vivemos com muito som e pouca fúria.
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O jornalismo, em parte, tem sido vítima e cúmplice dessa verborragia, dessa excessiva valorização da palavra dita. O jornalista é reduzido a um compilador de monólogos, a um aplicador de aspas em série. Especialmente se só pode contar com palavras transmitidas por telefone ou por e-mail. Fulano disse, sicrano afirmou. A vida é bem melhor do que isso. O dito é, muitas vezes, tão importante quanto o não-dito, o que o entrevistado deixa de dizer, o que omite. É preciso calar para ser capaz de escutar o silêncio. Olhar significa sentir o cheiro, tocar as diferentes texturas, perceber os gestos, as hesitações, os detalhes, apreender as outras expressões do que somos. Metade (talvez menos) de uma reportagem é o dito, a outra metade o percebido. Olhar é um ato de silêncio.
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Em janeiro de 2006, fiz uma experiência radical do olhar. Toco Lenzi, um dos grandes aventureiros do Brasil, me convidou para escrever um livro sobre a primeira parte de uma travessia. Ele vai trilhar o Saara, iniciando na Mauritânia e terminando na Tunísia – o vasto deserto entre o Atlântico e o Mediterrâneo. Sozinho, a pé, puxando um riquixá, uma espécie de carrinho de papeleiro, carregado com barraca, alimentos e água. Em janeiro, fez os 600 quilômetros iniciais, na Mauritânia. Fiquei com ele os primeiros 20 dias. E tomei a decisão de me despir de tudo o que me dá uma sensação (em geral ilusória) de controle. Fiz o antijornalismo. Não li nada a respeito da Mauritânia nem do deserto, nem sobre a sobrevivência no deserto. Não planejei nada. Minha única preparação foi caminhar algumas vezes por semana no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, para não empatar o projeto com câimbras e contusões. Como não falo uma palavra de árabe e entendo mal o francês, eu só podia contar com o olhar para interpretar uma realidade inteiramente virgem para mim. Eu só podia contar com os meus cinco sentidos para explorar um mundo de estranhezas. Uma experiência de entrega quase total a uma África que, apesar de nossas raízes tão próximas, fica tão longe. Voltei viva e, exceto por uma desidratação rápida, muito bem – com largos desertos dentro de mim que talvez nunca sejam preenchidos.

Olhar dá medo porque é risco. Se estivermos realmente decididos a enxergar não sabemos o que vamos ver. Quando saio da redação, tenho uma ideia de para onde devo olhar e o que pretendo buscar, mas é uma ideia aberta, suficiente apenas para partir. Tenho pena dos repórteres das teses prontas, que saem não com blocos, mas com planilhas para preencher aspas predeterminadas. Donos apenas da ilusão de que a vida pode ser domesticada, classificada e encaixotada em parágrafos seguros. Tudo o que somos de melhor é resultado do espanto. Como prescindir da possibilidade de se espantar? O melhor de ir para a rua espiar o mundo é que não sabemos o que vamos encontrar.
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Essa é a graça maior de ser repórter. (Essa é a graça maior de ser gente.)
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Numa manhã de abril de 1993, bem cedo, o chefe de reportagem da Zero Hora, onde eu trabalhava na época, me mandou cobrir uma coletiva de imprensa na prefeitura de Porto Alegre. A pauta era tão fascinante que nem lembro do que se tratava. O carro me deixou em algum ponto do centro e eu precisava andar um ou dois quarteirões para chegar à prefeitura. No caminho, eu vi uma rodinha. Eu estava atrasada, mas nunca resisti a uma rodinha. Perguntando e empurrando um e outro cheguei lá na frente. Diante dos meus olhos espantadíssimos emergiu de um bueiro um menino, em seguida outro. Esqueci completamente da coletiva que nunca virou notícia. Os garotos haviam dormido demais e, ao subir à superfície bem depois de o sol nascer, surpreenderam a população ao revelar a natureza de sua moradia. Os meninos vivendo em esgotos ganharam a capa do jornal do dia seguinte e viraram matéria internacional. Se eu fosse uma burocrata da notícia – e não uma repórter –, eu teria ignorado a rodinha porque estava atrasada e teria voltado para a redação com uma nota de pé de página sobre algo como o último projeto da Secretaria de Obras do município. Se eu tivesse preferido recuperar a coletiva por telefone então…

Não lembro de nenhuma reportagem que não tivesse me dado medo. Sinto medo até hoje. Medo de não dar certo, medo de não ver nada, medo de não conseguir, medo. Tenho insônia e, quando durmo, pesadelos. Antes, durante, depois. Antes de eu refazer a marcha da Coluna Prestes, que era minha estreia na grande reportagem, tive tanto medo que cheguei a adoecer. Como nada do que acontece comigo pode ser pouco, faço o tipo dramático, achei que estava com os dias contados. Nada. Puro pavor. Mas fui, um pânico em forma de repórter, mas andando. E prefiro nem imaginar o que não seria a minha vida se tivesse desistido.
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Medo é necessário, faz sentido. Só não dá para ter medo de ter medo, paralisar e deixar as histórias passarem sem encontrar quem as conte. Ficar escondido atrás de um computador, achando que o fato de escolher em que mundo virtual entrar, quando sair, quais e-mails responder e quais deletar é ter a vida sob controle configura, talvez, a grande ilusão contemporânea. Por mais que você escolha não viver, a vida te agarra em alguma esquina. O melhor é logo se lambuzar nela, enfiar o pé na jaca, enlamear os sapatos. Se quiser um conselho, vá. Vá com medo, apesar do medo. Se atire. Se quiser outro, não há como viver sem pecado. Então, faça um favor a si mesmo: peque sempre pelo excesso.
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Ser repórter é um dos grandes caminhos para entrar na vida (principalmente na alheia) com os dois pés e com estilo. Desde pequena, o que mais me fascinava era passar pelas casas e prédios de apartamentos (em Ijuí tinha dois), adivinhar a luz lá dentro e imaginar o que acontecia, que vidas eram aquelas, com o que sonhavam, que dramas tinham, o que as fazia rir. Pronto.
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Arranjei uma maneira de entrar em qualquer casa iluminada por dentro, mesmo que seja com uma vela. Ser repórter não tem preço. Em todos os sentidos.

Eu não gosto de heróis. De mitos, só os da Antiguidade. Não gosto porque não acredito, porque acho pobre, porque acho chato. Se de perto ninguém é normal, de perto ninguém é herói. Essa mania de mitificar gente, alçar fulano ou beltrano ao Olimpo porque supostamente fez algo sobre-humano, empata a vida. Faz com que os supostamente pobres mortais se sintam exatamente isso: pobres mortais. Ou losers, na expressão do que a cultura americana tem de pior.
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Um ser humano, qualquer um, é infinitamente mais complexo e fascinante do que o mais celebrado herói. Mesmo os super, dos quadrinhos e do cinema, pode reparar: o Homem-Aranha só consegue duas horas de filme por causa do atrapalhado Peter Parker e até o Super-Homem, que veio de outro planeta, só tem atenção por conta de suas fraquezas bem terráqueas (ou quantas voltas ao redor da Terra ele precisaria dar até todo mundo roncar?). Inclusive demônios como o Hellboy só são interessantes pelo que têm de humano, da ternura ao mau humor.
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Vou ao limite dos super-heróis para falar de uma obrigação de repórter. Meu professor de jornalismo, um baixinho-gigante chamado Marques Leonam, dizia: “Lei Leonam número um: repórter não tem o direito de ser ingênuo. Lei Leonam número dois: repórter não tem o direito de ser ingênuo…” Acho que ia até o número dez repetindo essa máxima leoniana. Eu faria alguns adendos a essa lei fundamental. Um deles é: desconfie dos heróis, dê uma boa cheirada num mito. Eles só se aproximam da verdade quando virados pelo avesso e promovidos a homens.
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Esse, de novo, é o encanto de A vida que ninguém vê. Inverter essa lógica que nos afasta para mostrar que o Zé é Ulisses – e o Ulisses é Zé. Somos todos mais iguais do que gostaríamos. E, ao mesmo tempo, cada um é único, um padrão que não se repete no universo, especialíssimo. Nossa singularidade só pode ser reconhecida no universal. Tudo é um jeito de olhar. Você pode olhar para o infinito, como Carl Sagan, e descobrir que é feito da poeira de estrelas. E pode olhar para o chão e acreditar que é um cocô de cachorro. É o mesmo homem que tem diante de si o infinito e o chão. Mas é nessa decisão que cada um se define. Como olhar para você mesmo é uma escolha. Um exercício da liberdade, da autodeterminação, do livre-arbítrio. Seja generoso. Arrisque. Ouse.
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Olhe.
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[Julho de 2006]
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Eliane Brum, no livro “A vida que ninguém vê“. [prefácio Marcelo Rech; posfácio Ricardo Kotscho]. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006

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