A carta reproduzida abaixo foi escrita por Eliane Brum e Jan Rocha, em fevereiro de 2015. Na ocasião, ambas buscavam acordar diferentes esferas da sociedade brasileira e convencê-las a aderir à luta pela Amazônia, luta essa que permanece firme e necessária.

“É preciso viver com terror e alegria.”

A frase é da antropóloga americana Donna Haraway. Ela cabe nesse momento da história em que a humanidade deixou de temer a catástrofe para se tornar a catástrofe que temia, nessa época em que a crise climática é possivelmente o maior desafio da trajetória humana na Terra, nesse ponto no tempo em que todos os nossos esforços serão empreendidos pela diferença nada mínima entre um planeta pior e um planeta hostil para a nossa e para outras espécies, essas sim inocentes.

Foi também com terror e alegria que lemos o relatório escrito pelo cientista Antonio Nobre, a partir da análise de duzentos artigos científicos, intitulado “O futuro climático da Amazônia”. Alegria, porque Nobre descreve processos da floresta que são tão ou mais extraordinários que uma sinfonia de Beethoven, um quadro de Picasso ou um poema de Fernando Pessoa. Terror porque ele nos mostra que 47% da Floresta Amazônica foi impactada nos últimos quarenta anos por atividade humana. Se esse ritmo de destruição continuar, as crianças que estão nascendo nesse momento, agora, podem chegar à vida adulta com a floresta convertida em cemitério. Alegria pela beleza, terror pela brutalidade.

Diz Antonio Nobre:

“A floresta sobreviveu por mais de 50 milhões de anos a vulcanismos, glaciações, meteoros, deriva do continente. Mas em menos de cinquenta anos, encontra-se ameaçada pela ação de humanos.”

Não bastasse toda a potência da vida ali, extraordinária, surpreendente, a Amazônia é estratégica para a regulação do clima no Brasil e no planeta. Há possibilidade de que o atual colapso da água que atinge hoje o país, em especial a região Sudeste, transformando São Paulo numa distopia futurista, esteja relacionado também à destruição da floresta.

Uma única árvore grande lança na atmosfera, pela transpiração, mais de mil litros de água por dia. A floresta inteira lança, a cada 24 horas, 20 trilhões de litros de água. Como comparação, vale lembrar que o rio Amazonas lança menos que isso no oceano Atlântico. Não é preciso ser um especialista para imaginar o que acontecerá com o planeta sem a floresta.

A devastação da Amazônia e seu papel na corrosão acelerada da vida evocam Melancolia, o filme de Lars von Trier. De certo modo, é como se de fato o planeta Melancolia estivesse numa rota acelerada de colisão com a Terra. No nosso caso, a Terra continuará existindo apesar da destruição da floresta e dos impactos do colapso climático, nossa vida nela é que será bem menos interessante. Como sempre em sociedades tão desiguais, para uns mais cedo do que para outros, mas pior para todos no instante seguinte. Não só a vida das pessoas humanas será afetada, mas também a das tantas pessoas não humanas que apenas pressentem que estamos acabando com o seu mundo.

Desde a Revolução Industrial, no século 18, com o início de um desenvolvimento nada sustentável, à base da queima de combustíveis fósseis, mas com muito mais intensidade no século 20, empreendemos uma trajetória vertiginosa rumo à extinção de vidas humanas e não humanas. Tornamo-nos uma força de destruição e autodestruição capaz de acabar com a possibilidade de viver na única casa que temos. E nada parece demonstrar que a fantasia de que haveria outros planetas para onde poderíamos imigrar — e, de novo, recomeçar nossa trajetória de destruição — esteja remotamente perto de deixar de ser apenas isto, uma fantasia. E uma fantasia sem força até mesmo na ficção, hoje muito mais tomada pelo que de fato poderemos nos tornar, e isso com alguma sorte: sobreviventes desesperados num mundo pós-catástrofe climática.

O que nos causa mais terror, porém, é o fato de que mesmo diante de evidências tão eloquentes, da enormidade da ameaça, a maioria da população siga negando a realidade que também construiu. Mesmo com a água faltando nas torneiras, com a temperatura mais alta a cada ano, com a vida sendo mastigada dia a dia, a alienação é assombrosa. Padecemos de desconexão com o mundo justamente na época mais conectada da história humana, na qual a maioria vive em rede quase todas as horas de vigília. Parece que ainda somos habitantes de uma modernidade na qual o homem acreditava se tornar capaz de superar até mesmo a morte, quando o futuro era só potência e progresso, patéticos tanto nas ilusões quanto na arrogância. Diante da tragédia, clamamos por obras, com a certeza de que alguma figura paterna (ou materna) vai nos salvar da desgraça. Ou chamamos nossa ação desastrosa de “fatalidade”.

Para muitos, demais, faz mais sentido se mobilizar por um fim do mundo fictício, como o da suposta profecia maia, exatamente porque fictício, do que para os tantos epílogos reais representados pela emergência climática, nos quais a Floresta Amazônica desempenha um papel crucial. Na entrevista “Diálogos sobre o fim do mundo”, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro sugeriu um conceito do pensador alemão Günther Anders para explicar a desconexão da maioria das pessoas, e não só aqui, mas em todo o planeta, com os desafios da crise climática.

Estamos familiarizados com o conceito dos fenômenos subliminares, aqueles tão pequenos, invisíveis, que não conseguimos perceber. Anders referiu-se ao “supraliminar”, um fenômeno tão grande que também não conseguimos perceber, desta vez pela enormidade. Em sua época, ele o usava para falar da bomba atômica, do momento em que o homem criou algo cujos efeitos não era mais capaz de imaginar. Eduardo Viveiros de Castro sugeriu então que a crise climática seria um desses fenômenos supraliminares, que não enxergamos justamente pelo tamanho do seu impacto.

Parece que sentimos a corrosão da vida, mas não conseguimos nomeá-la. Ou lhe damos outros nomes. Vivemos uma espécie de torpor alienado, o que talvez explique em parte o sucesso dos filmes e séries de zumbis. A tragédia é que não há tempo para formar uma nova geração, capaz de compreender o mundo em que vive e reagir ao que já está aqui, assumindo a sua responsabilidade. Como diz Antonio Nobre em seu relatório, não basta zerar o desmatamento da Amazônia já, agora, o que está bem longe de acontecer. É preciso recuperar a floresta. Já, agora. O cientista nos instiga a fazer uma campanha tão eficaz como foi aquela contra o tabaco: do glamour dos lábios de uma Rita Hayworth, na pele de Gilda, o cigarro passou a sinal de decadência, provocando repulsa em vez de sedução.

Nobre fala em “esforço de guerra” pela Amazônia. Isso, se não quisermos chegar ao ponto, muito próximo, de não retorno. Se a Amazônia for destruída, nem mesmo os grandes plantadores de soja ou os grandes criadores de gado que hoje botam abaixo a floresta se salvarão, eles mesmos já sentindo no seu negócio os efeitos do colapso climático. Assim como já não adianta ter carros importados e blindados nas ruas de São Paulo, porque também eles não conseguem se mover. O desafio de reflorestar a Amazônia exige uma aliança entre todas as forças da sociedade, em todas as áreas e em todos os campos do conhecimento, uma aliança contra a ignorância. A Amazônia não pode continuar a ser vista como um corpo para exploração, como um imaginário a serviço de nacionalismos de ocasião.

A Amazônia é um mundo ao qual se pertence, mas não pertence a ninguém. Tudo o que fizermos daqui para a frente não será para salvar a floresta, mas para salvar a nós mesmos. E são as gerações imperfeitas, da qual também fazemos parte, os homens e mulheres consumistas, inconsequentes e arrogantes que aqui estão, que terão de assumir esse desafio. Toda matéria humana de que dispomos somos nós mesmos. O tempo de despertar já passou. Agora é hora de acordar em pânico.

É nesse ponto que nos colocamos, cheias de terror e alegria. Terror pela urgência e pela monumentalidade da tarefa. Alegria porque rompemos a paralisia e o torpor e começamos a nos mover.

Esse texto é um convite para que você se mova com a gente.

 

Eliane Brum, no livro “Banzeiro òkòtó: uma viagem à Amazônia centro do mundo”. Companhia das Letras, 2021

Foto de capa: Araquém Alcântara/WWF Brasil







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