SOCIEDADE

O homem que come vidro, por Eliane Brum

Do interior de um círculo de cacos de vidro, em frente ao Mercado Público de Porto Alegre, o homem franzino, pouco mais que um graveto de pele, me fez, à queima-roupa, uma pergunta abissal:
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– Moça, me diz uma coisa. Tu acha que eu devo continuar comendo vidro ou devo desistir, voltar para a minha terra e plantar uma rocinha?

Fiquei muda. Ele deveria ou não continuar comendo vidro? Então compreendi. Jorge Luiz Santos de Oliveira, batizado assim 35 anos atrás, tinha o sonho de ganhar a vida comendo vidro. Porque comer vidro é a arte de Jorge Luiz. É o que desde cedo diferenciou Jorge Luiz da massa triste de todos os Jorges, da longa fileira de colonos de São Jerônimo, terra carvoeira, escura, de gosto acre. Foi mascando seu chão pedregoso que ele descobriu que era um ser único no mundo, apesar do mesmo rosto melancólico, da mesma pele esticada sobre os ossos. Foi mastigando pedras para espantar os vermes que lhe subiam pelas tripas que ele desbravou a sua arte. E para quem regurgitava pedras, o vidro não metia susto.
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Jorge Luiz passou a deglutir garrafas de cerveja, de conhaque, até champanha. Transformou-se, como diz seu desajeitado cartaz de papelão, no Homem de Aço. E assim, ruminando um litro de uísque, on the rocks, Jorge Luiz me fez a pergunta de sua encruzilhada. Tudo porque Jorge Luiz estava deprimido. Lágrimas boiavam nos olhos do homem que engolia cacos.

Jorge Luiz não tinha público, a tragédia inescapável de um artista. Fez o tradicional círculo de água para chamar sua plateia, mas ela não veio. Estavam todos lá, ao redor de um índio que mostrava um lagarto vivíssimo dentro de uma caixa e vendia umas pomadas milagrosas vindas, garantia ele, diretamente da Amazônia. Antes, Jorge Luiz tinha tentado realizar seu espetáculo na Esquina Democrática, mas foi embora ao avistar o dono do ponto, o magistral Rambo Brasileiro e seu respeitável feixe de músculos.
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O Homem de Aço bandeou-se então para o Largo Glênio Peres com todas as suas riquezas: um chapéu de couro, um saco de cacos de vidro, uma foto do casal de filhos e um bilhete escrito por ele mesmo em que jura amar para além da vida a esposa que morreu atropelada dois anos atrás. Tatiane, eu tiamo, assim, grudado para que não seja separado da mulher da sua vida novamente nem pelo vácuo da gramática.
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Quando o encontrei, Jorge Luiz acabara de estraçalhar um canino com o caco de uma garrafa importada que havia arranjado numa cesta de lixo. Vidro duro, assombrou-se o Homem de Aço, um fio vermelho-escuro escapando pelo canto da boca. Contou-me que seu ídolo e inspirador era o Homem-Avestruz, que engolia bolas de sinuca. Cadeados com a chave e tudo estômago abaixo.

Jorge Luiz não entendia por que as pessoas preferiam ver um lagarto sem graça fazer coisa nenhuma a assistir a um homem comer vidro, deitar-se sobre vidro, caminhar sobre vidro. Não compreendia um mundo em que um homem comendo vidro não causa espanto.
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Ficamos os dois ali, olhando feio para o lagarto. Depois fui embora, sem responder à sua pergunta de abismo. O Homem de Aço não estava preparado para a maior de todas as dores: a da invisibilidade.
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[6 de fevereiro de 1999]
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Eliane Brum, no livro “A vida que ninguém vê“. [prefácio Marcelo Rech; posfácio Ricardo Kotscho]. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006

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