AMIGO MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!

Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo.

Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá… Você sabe: a vida é um Itamarati – viver é muito dificultoso.

Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos e volapuques.

Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas. Nenhum dicionário dá a palavra “vereda” com o significado que você mesmo define à página 74: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda.” Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: “ciriri dos grilos”, “gugo da juriti” etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é “arga”, “suscenso”, “lugugem” e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem corpo nem côr nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?

Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço A sua invenção é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que não ficou de fora nenhuma dicção de seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa formação lingüística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré.

Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! nunca que maldei nada.

Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com uma intensidade assombrosa. E o sertão?

O sertão é uma espera enorme.

E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.

Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa’uarda, ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que proseava gentil sobre as sérias imoralidades.

Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe:

O diabo não há! Existe é o homem humano.

Soscrevo.
13/3/1957
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Fonte: BANDEIRA, Manuel. “Grande sertão: veredas”. in: Poesia completa e prosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. p.590-92.

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