COLUNISTA

Guerra: as nações brincam perigosamente com seus arsenais, por Paulo Baía

O mundo está mais perigoso. Não é uma impressão, não é exagero. É fato. A cada gesto, a cada palavra das grandes lideranças globais, aproxima-se o espectro de uma nova guerra mundial, talvez atômica, capaz de riscar civilizações inteiras do mapa. As nações brincam perigosamente com seus arsenais, como crianças inconsequentes lidando com fósforos perto de um galpão cheio de gasolina. Enquanto isso, aqui embaixo, nas ruas das grandes cidades brasileiras, o cotidiano é um campo minado: tiros cruzam avenidas, vidas se encerram na esquina, na porta de casa, no ponto de ônibus. A violência não pede licença, não tem hora, não escolhe rosto. O medo virou rotina. A morte, vizinha.
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Basta ligar a televisão, o rádio, folhear os jornais: tudo parece prenúncio do fim. Explosões no Oriente Médio, tanques cruzando fronteiras na Europa, drones assassinos sobrevoando bairros inteiros, crianças soterradas por escombros, civis correndo de bombas que não pedem identidade. O que parecia distante já não é. O terror atravessa oceanos na velocidade das telas. A guerra mundial é mais que um fantasma: é uma possibilidade concreta, desenhada nas falas frias dos presidentes, nas ameaças veladas dos generais, nos cálculos insanos dos estrategistas que brincam de Deus.

Aqui, onde as bombas ainda não caem, caem balas. Balas perdidas que encontram corpos, balas achadas que destroem sonhos. Atravessar a cidade virou um exercício de sobrevivência. O trabalhador não sabe se volta. A criança não sabe se chega à escola. A mãe não sabe se verá o filho dormir. As grandes cidades brasileiras são hoje retratos urbanos da barbárie: muros altos, cercas elétricas, ruas vazias à noite, desconfiança em cada olhar. A vida foi sequestrada pelo medo. E o medo virou governo, virou política, virou método.
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Mas há quem, mesmo diante desse colapso anunciado, não se renda à desesperança. Há quem acredite que ainda existe uma fresta, uma chance, mesmo que minúscula, de impedir o colapso total. E é nessa direção que ecoa a voz firme, lúcida e profundamente humana de Eliane Brum — jornalista premiada, ativista sincera, incansável, dedicada às causas socioambientais e à defesa da vida em sua forma mais ampla. Ela nos oferece um fio de sentido, um antídoto contra o colapso, quando afirma: “O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.”
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Essa frase não é poesia barata. É uma declaração política. Uma convocação. Uma denúncia contra a lógica que transforma vidas em estatísticas, que naturaliza corpos no chão, que celebra a guerra como solução e o lucro como Deus. É no contrário da lógica do poder que mora a possibilidade de salvar o que ainda resta. É no gesto que não aparece na TV, que não vira manchete, que não rende curtidas — mas que, silenciosamente, impede que tudo desabe de vez.
 
Enquanto os chefes de Estado apertam botões, fazem discursos bélicos e jogam roleta russa com o futuro da humanidade, há quem insista em olhar o outro. Quem segura a mão de quem está caindo. Quem oferece um abrigo, uma palavra, um pedaço de dignidade. Essa é, talvez, a única trincheira possível. A única resistência real. Se ainda existe alguma esperança, ela está justamente no que o poder despreza: no olhar que abraça, no afeto que repara, na coragem de não se desumanizar. Porque, se depender dos donos do mundo, o futuro já acabou. Mas se depender dos invisíveis — daqueles que salvam o mundo pelo avesso da importância —, talvez ainda haja chance. Mesmo que pequena. Mesmo que tênue. Mesmo que quase nada.
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[27 de maio de 2025 em Cabo Frio/RJ].

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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** Leia outros artigos e crônicas do autor publicados na revista. clique aqui
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Leia também:
:: Paulo Baía – é tempo de alteridades radicalizadas
:: Paulo Baía – pensamento social e político de José de Souza Marques

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