Gibran Khalil Gibran - O Profeta: 11 breves poemas em prosa
Gibran Khalil Gibran nasceu em 6 de janeiro de 1883, em Bicharre, no Líbano. Em 1895 sua família emigrou para os Estados Unidos, estabelecendo-se na comunidade libanesa de Boston, Massachusetts. Nesse período, Gibran sofreu influência da arte de vanguarda local, principalmente nas artes plásticas. Aos 15 anos, sua mãe o enviou de volta ao Líbano para estudar numa instituição maronita em Beirute, onde começou a escrever poemas. Em 1902, voltou a Boston, e em 1904 ocorreu a primeira exibição de suas pinturas. Gibran escreveu em árabe e em inglês, convivendo sempre com sua cultura de origem e a do país em que viveu a maior parte de sua vida. Sua primeira obra publicada foi O louco. Em 1923, escreveria seu livro mais conhecido, O profeta, e em 1938 Jesus, o Filho do Homem. Khalil Gibran faleceu em 10 de abril de 1931, em Nova York.
O profeta, obra-prima de Gibran Khalil Gibran, lançado em 1923, é um livro que inspira por meio da filosofia e sabedoria: viver bem com os nossos pensamentos, comportamentos e escolhas. Com sábias palavras, o autor propõe uma reflexão sobre a bondade e a beleza da vida. O profeta é uma obra acessível, para ler em todas as fases da vida, pois nos ensina sobre o amor, o trabalho, a alegria, a morte entre outros temas universais. Escrito em inglês e traduzido em 40 idiomas
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Seleta de textos em prosa do livro ‘O Profeta’ (The prophet) de Gibran Khalil Gibran, em tradução de Ricardo R. Silveira
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Filhos
E uma mulher, com um bebê ao colo, disse:
“Fala-nos de Filhos.”
E ele disse:
“Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da aspiração divina pela vida. Vêm por vosso intermédio, mas não de vós;
E embora estejam convosco, não vos pertencem.
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Podeis conceder-lhes vosso amor, mas não vossos pensamentos;
Pois têm seus próprios.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois elas abrigam-se no amanhã, que não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis torná-los iguais a vós;
Pois a vida não segue para trás nem se retarda com o ontem.
Sois os arcos com os quais vossos filhos são lançados qual setas vivas.
O Arqueiro aponta na direção do infinito, e vos curva com Sua força para que Suas flechas sejam lançadas, rápidas e certeiras, para bem longe.
Ao deixar-se encurvar pelas mãos d’O Arqueiro, sede felizes;
Pois assim como Ele ama a seta que voa, ama também o arco que é estável.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
Comer e Beber
Então, um velho estalajadeiro disse:
“Fala-nos de Comer e Beber.”
E ele disse:
“Pudéreis viver da fragrância da terra e, qual plantas, nutrir-vos da luz.
Mas, já que precisais matar para comer e roubar ao recém-nascido o leite de sua mãe para saciar vossa sede, convertei-os em atos de devoção.
E que vossa mesa seja um altar onde os puros e os inocentes das florestas e planícies são sacrificados ao que é ainda mais puro e mais inocente no homem.
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Ao matardes um animal, dizei-lhe em vosso coração:
‘Pela mesma força que te imola, também eu serei imolado, e servirei de alimento a outrem.
Pois a lei que te entregou às minhas mãos entregar-me-á a mãos mais poderosas.
Teu sangue e o meu são apenas a seiva que nutre a árvore do paraíso.’
E ao morderdes um pomo, dizei-lhe em vosso coração:
‘Tuas sementes viverão em meu corpo,
E os brotos de teu amanhã florescerão em meu coração,
E teu aroma será meu hálito,
E juntos regozijar-nos-emos em todas as estações.’
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E no outono, ao colherdes de vosso vinhedo as uvas para o lagar, dizei em vosso coração:
‘Eu também sou um vinhedo, e meu fruto será colhido para o lagar,
E, como vinho novo, serei guardado em recipientes eternos.’
E no inverno, ao drenardes o vinho, que haja em vosso coração uma ode a cada cálice;
E dedicai um verso de recordação aos dias outonais, e ao vinhedo e ao lagar.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
Alegria e Tristeza
Então, uma mulher disse:
“Fala-nos de Alegria e Tristeza.”
E ele respondeu:
“Vossa alegria é vossa tristeza desmascarada.
E o mesmo poço de onde brota vosso riso, muitas vezes esteve cheio de vossas lágrimas.
E como pode ser de outra forma?
Quanto mais profundas as marcas da tristeza em vosso ser, maior alegria podereis conter.
Acaso não seria o cálice onde verteis vosso vinho o mesmo que foi cozido no forno do oleiro?
E não seria o alaúde que acalma vosso espírito a própria madeira que foi entalhada a faca?
Quando estiverdes alegres, olhai para o fundo de vossos corações e vereis que exatamente aquilo que vos causou tristeza é o que vos está causando alegria.
Quando estiverdes tristes, voltai o olhar para dentro de vossos corações, e vereis que estais chorando exatamente pelo que vos causou alegria.
Alguns dentre vós dizeis: ‘A alegria é maior do que a tristeza’, e outros: ‘Não, a tristeza é maior.’
Mas eu vos digo, são inseparáveis.
Vêm juntas, e enquanto uma se senta à mesa convosco, não vos esqueçais de que a outra jaz no leito adormecida.
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Na verdade, estais suspensos como os dois pratos da balança entre vossa alegria e vossa tristeza.
Somente quando estais vazios é que vos encontrais em equilíbrio, sem movimento.
Quando o tesoureiro vos ergue para pesar o ouro e a prata, é necessário que vossa alegria ou vossa tristeza se eleve ou recaia.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
A Liberdade
E um orador disse:
“Fala-nos da Liberdade.”
E ele respondeu:
“Nos portões da cidade e no regaço de vossos lares, já vos vi exaltardes a própria liberdade,
Qual escravos que se rebaixam diante de um tirano e o glorificam embora ele os destrua.
Na alameda do templo e à sombra da cidadela, tenho visto os mais livres dentre vós carregando a própria liberdade como jugo e algemas.
E meu coração sangrou ao vê-lo; pois só podereis ser livres quando até mesmo o desejo de procurar a liberdade já seja o bastante para subjugar-vos, e quando cessardes de falar em liberdade como meta e plenitude.
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Sereis livres de verdade quando vossos dias não mais carecerem de preocupações, e vossas noites, de necessidades e aflições,
Quando tais coisas cingirem vossas vidas e fordes, contudo, capazes de elevar-vos acima delas, desnudados e desacorrentados.
E como vos elevareis acima de vossos dias e de vossas noites se não romperdes os grilhões com que, no alvorecer de vosso despertar, atastes vossa hora de vigília?
O que chamais de liberdade é, na verdade, a mais forte das correntes, embora vos deslumbreis com o brilho do sol refletido em seus elos.
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E o que quereis rejeitar, a fim de que sejais livres, senão fragmentos de vós próprios?
Se é uma lei injusta que pretendeis abolir, lembrai-vos de que ela foi escrita por vossa própria mão em vossa própria fronte.
Não sereis capazes de extingui-la queimando vossos códigos nem lavando, com toda a água do mar, as faces de vossos juízes.
E se é um déspota que pretendeis destronar, verificai primeiro se seu trono erguido dentro de vós está destruído.
Pois como poderia um tirano dominar os livres e os altivos se não houvesse tirania em sua própria liberdade e vergonha em sua própria altivez?
E se é uma preocupação que pretendeis eliminar, ela foi por vós escolhida e não imposta.
E se é um temor que pretendeis dispersar, este medo existe em vosso coração e não em poder do temido.
Na verdade, tudo se movimenta dentro de vosso ser em pares constantes: o desejado e o temido, o repugnante e o querido, o almejado e aquilo do qual desejais escapar.
Tais coisas se movimentam dentro de vós qual luzes e suas sombras.
E quando uma sombra se esvai até extinguir-se, a luz que permanece torna-se a sombra de uma outra luz.
Assim é vossa liberdade: ao perder os próprios grilhões, torna-se o grilhão de uma outra ainda maior.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
O Autoconhecimento
E um homem disse:
“Fala-nos do Autoconhecimento.”
E ele respondeu, dizendo:
“Vossos corações conhecem, em silêncio, os segredos dos dias e das noites.
Mas vossos ouvidos têm sede de ouvir o saber de vossos corações.
Desejais conhecer, em palavras, o que sempre soubestes em pensamento.
Desejais tocar, com vossos dedos, o corpo desnudo de vossos sonhos.
E é bom que assim seja.
A fonte oculta de vossa alma precisa brotar e correr, murmurante, até o mar;
E assim seria revelado aos vossos olhos o tesouro de vossas profundezas infinitas.
Mas que não haja medida para vosso tesouro desconhecido;
E não deveis sondar as profundezas de vosso conhecimento com cajado e bordão.
Pois o Eu é um oceano imensurável e sem fronteiras.
Não dizei: ‘Encontrei a verdade’, mas sim: ‘Encontrei uma verdade.’
Não dizei: ‘Encontrei o caminho da alma.’ Dizei: ‘Encontrei a alma enquanto seguia meu caminho.’
Pois a alma segue todos os caminhos.
A alma não caminha sobre uma linha, nem cresce como um junco.
A alma desdobra-se, como um lótus de inúmeras pétalas.”
O Ensino
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Então, um professor falou: “Fala-nos do Ensino.”
E ele disse:
“Nenhum homem pode revelar-vos o que não esteja semiadormecido no alvorecer de vosso conhecimento.
O mestre que caminha nas sombras do templo, entre seus seguidores, não doa de sua sabedoria, mas sim de sua fé e de sua ternura.
Se for realmente sábio, não vos convidará a entrar na mansão de seu saber, mas sim vos conduzirá ao limiar de vossa própria mente.
O astrônomo pode falar-vos de seu conhecimento do espaço, mas não poderá passar-vos sua compreensão.
O músico pode cantar o ritmo que existe em todo o espaço, mas não pode conceder-vos o ouvido que capta a melodia nem a voz que a reproduz.
E quem detém ciência dos números pode vos contar sobre as regiões dos pesos e medidas, mas não pode vos conduzir até lá.
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Pois a visão de um homem não empresta suas asas a outro homem.
E assim como cada um de vós está isolado na consciência de Deus, cada um deve vivenciar seu conhecimento de Deus e ter sua compreensão do mundo.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
A Amizade
E um jovem disse:
“Fala-nos da Amizade.”
E ele respondeu, dizendo:
“Vosso amigo é a resposta a vossas necessidades.
Ele é vosso campo, que semeais com amor e colheis com gratidão.
E ele é vossa mesa e vossa lareira.
Pois ides a ele com vossa fome, e buscais nele vossa paz.
Quando vosso amigo vos fala com sinceridade, não temeis pensar que ‘não’, nem vos furtais a dizer que ‘sim’.
E quando ele se cala, vosso coração não deixa de ouvir o seu;
Pois na amizade, os pensamentos, os ideais e as expectativas nascem e são compartilhados, sem palavras, em silenciosa alegria.
Quando vos separais de vosso amigo, não vos afligis;
Pois o que amais nele pode evidenciar-se na sua ausência, como a montanha, para o alpinista, é mais evidente da planície.
E que não haja propósito na amizade, salvo o aprofundamento do espírito.
Pois o amor que busca algo mais do que a revelação de seu próprio mistério não é amor, e sim uma rede armada: e só o inaproveitável é apanhado.
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E que o melhor de vós seja para vosso amigo.
Se ele deve conhecer o refluxo de vossa maré, que conheça também o fluxo.
Pois que amigo é esse que só o procurais a fim de matar o tempo?
Procurai-o sempre para viver o tempo.
Pois cabe-lhe satisfazer vossa necessidade, mas não preencher vosso vazio.
E na doçura da amizade, que haja risos e que se compartilhem prazeres.
Pois no orvalho de pequenas coisas, o coração encontra sua manhã e se refaz.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
A Conversa
E então, um sábio disse:
“Fala-nos da Conversa.”
E ele respondeu, dizendo:
“Vós conversais quando deixais de estar em paz com vossos pensamentos;
E quando não mais podeis habitar a solidão de vosso coração, viveis em vossos lábios, e o som é uma diversão e um passatempo.
E em muitas de vossas conversas, o pensamento é obliterado.
Pois ele é um pássaro livre que, confinado a palavras, pode até abrir as asas mas é incapaz de voar.
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Há, dentre vós, os que buscam conversar por medo de ficarem sós.
A quietude da solidão revela aos seus olhos seu Eu-desnudo, e preferem esquivar-se.
E há os que conversam e, sem conhecimento ou preocupação, revelam uma verdade que eles próprios não compreendem.
E há os que têm consigo a verdade, mas não a expressam com palavras.
No íntimo destes habita a alma em silêncio rítmico.
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Ao encontrar vosso amigo na estrada ou no mercado, deixai que o espírito que existe em vós mexa vossos lábios e conduza vossa língua.
Deixai que a voz dentro de vossa voz fale para o ouvido dentro de seu ouvido;
Pois sua alma guardará o segredo de vosso coração, como o sabor do vinho é lembrado,
Quando a cor é esquecida e o cálice não existe mais.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
O Tempo
E um astrônomo disse:
“Mestre, o que nos dizes do Tempo?”
E ele respondeu:
“Desejaríeis medir o tempo, o ilimitado e imensurável.
Desejaríeis ajustar vossa conduta e até mesmo orientar o curso de vosso espírito de acordo com as horas e estações.
Do tempo, faríeis um córrego sobre cujas margens sentar-vos-íeis a mirá-lo.
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Mas o que em vós escapa ao tempo sabe que a vida escapa ao tempo,
E sabe que o ontem é mera lembrança do hoje, e o amanhã, o sonho do hoje.
E que aquilo em vós que canta e contempla, ainda habita os confins do primeiro momento que espalhou os astros pelo espaço.
Quem, dentre vós, não sente que sua capacidade de amar é ilimitada?
E, contudo, quem não sente que esse mesmo amor ilimitado está circunscrito ao seu próprio ser, e que ele não fica passeando de um pensamento amoroso para outro, nem de atos amorosos para outros?
E não é o tempo tal qual o amor, indivisível e incontido?
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Mas se vossos pensamentos precisam medir o tempo em estações, que cada uma dessas estações envolva todas as outras,
E que o dia de hoje abrace o passado com nostalgia e o futuro com aspirações.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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Preces
Então, uma sacerdotisa disse:
“Fala-nos das Preces.”
E ele respondeu, dizendo:
“Vós rezais em vossas aflições e em vossas necessidades; pudésseis rezar também na plenitude de vossa alegria e em vossos dias de abundância.
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Pois o que é a prece senão a expansão de vosso ser no éter da vida?
E se vos traz conforto verter vossas trevas no espaço, exalar a aurora de vossos corações também vos traz deleite.
E se não sois capazes de deter as lágrimas quando vossa alma vos invoca a orar, ela deve instigar-vos continuamente, embora em pranto, até que vos faça sorrir.
Quando rezais, vos elevais a fim de encontrar aqueles que estão a rezar no mesmo instante, e com quem, salvo em preces, talvez não vos encontraríeis.
Portanto, que vossa visita a esse templo invisível não sirva a outro propósito além de êxtase e harmoniosa comunhão.
Pois se entrardes no templo apenas para pedir, nada recebereis:
E se ao ali entrardes vergar-vos, não sereis erguido:
Ou mesmo se entrardes para implorar pelo bem de outrem, não sereis ouvido.
Basta-vos entrar no templo invisível.
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Não posso ensinar-vos a orar com palavras.
Deus não escuta vossas palavras, salvo quando Ele Próprio as pronuncia através de vossos lábios.
E não posso ensinar-vos a oração dos mares, das florestas e das montanhas.
Mas vós que nascestes das montanhas, das florestas e dos mares, podeis encontrar suas preces em vosso coração,
E se escutardes apenas em meio ao silêncio da noite, podereis ouvi-los dizendo em silêncio:
‘Deus nosso, que és nosso Eu-alado, é Tua vontade em nós que se expressa.
É Teu desejo em nós que deseja.
É Teu ímpeto em nós que deseja transformar nossas noites, que são Tuas, em dias que são Teus também.
Nada Te podemos pedir, pois conheces nossas necessidades antes mesmo que surjam em nós:
Tu és nossa necessidade; e dando-nos mais de Ti, Tu nos dás tudo.’”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
O Prazer
Então, um eremita, que visitava a cidade uma vez por ano, aproximou-se e disse:
“Fala-nos do Prazer.”
E ele respondeu, dizendo:
“O prazer é uma canção de liberdade,
Mas não é a liberdade.
É o desabrochar de vossos desejos,
Mas não é seu fruto.
É um abismo clamando pelo cume,
Mas não é o abismo nem o cume.
É o encarcerado criando asas,
Mas não é o espaço cingido.
Sim, é bem verdade, o prazer é uma canção de liberdade.
E eu, de bom grado, vos ouviria cantá-la de todo o coração; mas não gostaria que perdêsseis vosso coração ao cantá-la.
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Alguns de vossos jovens buscam o prazer como se fosse tudo na vida, e são julgados e repreendidos.
Eu preferiria nem julgá-los, nem repreendê-los, mas deixá-los procurar.
Pois eles encontrarão o prazer, mas não apenas o prazer;
Sete são suas irmãs, e a última dentre elas é mais bela que o prazer.
Acaso não ouvistes falar do homem que escavava a terra em busca de raízes e encontrou um tesouro?
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E alguns dentre vossos anciãos recordam-se do prazer com remorso, como erros cometidos em meio à embriaguez.
Mas o remorso oblitera a mente e não lhe serve de corretivo.
Eles deveriam recordar-se de seu prazer com gratidão, como se recordariam da colheita do verão.
Contudo, se o remorso os conforta, que sejam confortados.
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E há entre vós aqueles que não são jovens para procurá-lo nem velhos para recordar;
E em meio ao temor da procura e da recordação, abstêm-se de todos os prazeres, a fim de não negligenciarem o espírito, nem ofendê-lo.
Mas até em sua abstenção reside seu prazer.
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E assim eles também encontram um tesouro embora escavem raízes com mãos trêmulas.
Mas, dizei-me, quem é capaz de ofender o espírito?
O rouxinol ofende a quietude da noite, ou o pirilampo, as estrelas?
E vossa chama ou fumaça sobrecarrega o vento?
Acaso pensais que o espírito seja água parada que se pode agitar com uma vareta?
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Muitas vezes, ao renunciardes ao prazer, conseguis somente represar o desejo nas entranhas de vosso ser.
Quem sabe aquilo que se omite hoje pode estar apenas aguardando pelo amanhã?
Vosso próprio corpo conhece seu legado e seus direitos, e não se deixará enganar.
E vosso corpo é a harpa de vossa alma,
E cabe a vós deles tirar doce melodia ou ruídos dissonantes.
E agora perguntais em vosso coração: ‘Como havemos de distinguir o que é bom no prazer daquilo que não é?’
Ide a vossos campos e vossos jardins, e aprendereis que o prazer da abelha é colher o mel da flor,
Mas que também o prazer da flor é conceder o mel à abelha.
Pois para a abelha, a flor é a fonte da vida,
E para a flor, a abelha é mensageira do amor,
E para ambas, abelha e flor, dar e receber prazer é uma necessidade e um êxtase.
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Povo de Orphalese, sejai, em vossos prazeres, como as flores e as abelhas.”
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Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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§§
A Beleza
E um poeta disse:
“Fala-nos da Beleza.”
E ele respondeu:
“Onde devereis buscar a beleza, e como sabereis encontrá-la se não for ela própria vosso caminho e vosso guia?
E como falareis dela se não for ela própria a arquiteta de vosso discurso?
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Os aflitos e os feridos dizem: ‘A beleza é boa e gentil.
Como uma jovem mãe meio acanhada de sua própria glória, ela caminha entre nós.’
E os apaixonados dizem: ‘Não, a beleza é poderosa e temerosa.
Como a tempestade, ela abala a terra sob nossos pés e o céu sobre nossas cabeças?’
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Os que estão cansados e desgastados dizem: ‘A beleza sussurra baixinho. Ela fala ao nosso espírito.
Sua voz cede aos nossos silêncios como uma luz tênue que tremula com medo da sombra.’
Mas o irrequieto diz: ‘Nós a ouvimos gritando atrás das montanhas,
E com seus gritos chegaram um tropel de cavalos, um bater de asas e o rugir de leões.’
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À noite, os guardas da cidade dizem: ‘A beleza surgirá ao leste com a aurora.’
E ao meio-dia, os camponeses e os navegantes dizem: ‘Nós a vimos se debruçando sobre a terra, das janelas do poente.’
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No inverno, os prisioneiros da neve dizem: ‘Ela virá com a primavera, saltitando sobre as colinas.’
E no calor do verão, os trabalhadores da colheita dizem: ‘Nós a vimos dançando com as folhas do outono, e vimos um floco de neve em seu cabelo.’
Tudo isso dissestes da beleza,
Contudo, não falastes dela mas de necessidades por satisfazer,
E a beleza não é uma necessidade, mas sim, um êxtase.
Não é uma boca sedenta nem uma mão vazia que se estende,
Mas sim, um coração em chamas e uma alma embevecida.
Não é uma imagem que desejais ver nem uma canção que desejais ouvir,
Mas sim, uma imagem que enxergais, ainda que de olhos fechados, e uma canção que ouvis, ainda que de ouvidos tapados.
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Não é a seiva no tronco talhado da árvore, nem uma asa nas garras da ave de rapina,
Mas sim, um jardim sempre florido e anjos em voo eterno.
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Povo de Orphalese, a beleza é a vida, quando esta revela sua face sagrada.
Mas sois a vida e sois o véu.
A beleza é a eternidade mirando-se num espelho.
Mas vós sois a eternidade e vós sois o espelho.”
—
Do livro ‘O profeta’ (The prophet) / Khalil Gibran Gibran. Tradução Ricardo Ramalho Silveira. Edição especial. Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
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