quinta-feira, julho 24, 2025

Fernando Brant: o poeta dos quintais, por Daniela Aragão

Era 2001, eu muito pouco familiarizada com computador fui até a casa de meu amigo Emerson para que ele passasse para mim um email endereçado ao compositor Fernando Brant. Em poucas linhas eu comunicava meu desejo de mergulhar em suas letras para o projeto de mestrado na UFRJ. Fernando, atencioso, respondeu-me em menos de uma semana me dando carta aberta. Jamais vou me esquecer de suas palavras que demonstravam simplicidade e acolhimento, característica comum aos bons mineiros.
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Guardei o email com carinho e o projeto ficou engavetado visto que minha dissertação de mestrado acabou tomando outros rumos. No entanto, a beleza dos versos do compositor me acompanha sem interrupções. Tenho escutado insistentemente um disco primoroso inteiramente dedicado à obra de Fernando Brant intitulado “Vendedor de sonhos”, trata-se de releituras de clássicos do letrista interpretados por Beto Guedes, Joyce Moreno, Mônica Salmaso, Djavan, Fernanda Takai, Toninho Horta, Tavinho Moura, Zé Renato, Vander Lee, Paula Santoro, Nina Becker, Dori Caymmi, Lô Borges, Milton Nascimento, Flávio Venturini, Marina Machado, Boca Livre e Tadeu Franco.

O disco é excelente da primeira à última faixa, sendo assim o ouvinte pode escolher passear desordenadamente, que não perde o fluxo de maravilhas. Beto Guedes inaugura a faixa de abertura com San Vicente, canção originalmente gravada por Milton Nascimento em 1972. A interpretação do cantor mineiro mostra sua desenvoltura com a arquitetura lírico musical da composição. Importante destacar que o diretor do álbum, Robertinho Brant é o responsável pela produção do cd e pelos arranjos: “Coração americano/ Acordei de um sonho estranho/ Um gosto, vidro e corte/ Um sabor de chocolate/ No corpo e na cidade/ Um sabor de vida e morte// A espera na fila imensa/ E o corpo negro se esqueceu /Estava em San Vicente /A cidade e suas luzes”. Os versos de Fernando Brant acoplados a música de Milton Nascimento revelam uma espécie de alegoria da vida opressiva de um brasileiro, latino americano em pleno momento de ditadura militar. Aliás, boa parte da produção da dupla Milton e Brant em final dos anos sessenta e início dos anos setenta traz como tema alegórico o contexto ditatorial. O binômio vida e morte em “San Vicente” se transfigura no contraste entre o negro, o rubro e a luminosidade que desponta como uma sorte de saída.
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Um passeio atento e apaixonado pelas letras de Fernando Brant me aponta singularidades que possibilitam entender melhor sobre a cosmovisão deste criador. O título do cd “Vendedor de sonhos” anuncia a viagem daquele que sai de seu quintal rumo ao mundo viajando em direção a estradas distintas, mas que nunca se afastam de sua essência mineira. Se me faço entender, Fernando Brant elabora um amplo périplo que incorpora sobretudo as paisagens mineiras, a estética barroca é elemento primordial no conjunto da obra que constrói em fragmentos traços profundos da estética e da ânima dos habitantes de Minas Gerais. O vendedor de sonhos é o menestrel que clama suas ideias e seus sonhos: “Vendedor de sonhos/ tenho a profissão viajante/ de cargueiro que traz na bagagem/ repertório de vida e canções”.

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Milton Nascimento e Fernando Brant, em 1969

“Vendedor de sonhos” traz releituras impecáveis das canções que mostram como cada intérprete se afina com propriedade. Tão únicas e emocionantes interpretações que me transportam para o trabalho de songbooks realizado pelo saudoso Almir Chediak. Milton Nascimento nos brinda com sua interpretação pulsante para “O medo de amar é o medo de ser livre”, o cantor munido de sua voz vigorosa valoriza cada filigrana dos versos de Brant. Djavan interpreta com tamanha intensidade “Milagre dos peixes” que faz parecer que a composição é de sua própria autoria: “Desenhando nessas pedras/Tenho em mim todas as cores/Quando falo coisas reais/E no silêncio dessa natureza/Eu que amo meus amigos/Livre, quero poder dizer”.
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“Outubro”, parceria de Brant com Milton Nascimento, gravada por Milton em 1962, ganha um arranjo cool com a voz de timbre suave da cantora Nina Becker. Os versos dialogam com uma sensibilidade melancólica e profunda cujo mês faz inferência ao declínio de círculos, uma transição de tempos: “Tanta gente no meu rumo/Mas eu sempre vou só/Nessa terra desse jeito/Já não sei viver/Deixo tudo deixo nada/ Só do tempo eu não posso me livrar”. Toninho Horta marca sua assinatura na tão famosa “Travessia”, composição que fora gravada por tantos intérpretes, até mesmo Sarah Vaughan. Bonito demais o violão primoroso e personalíssimo de Toninho. Além do violão sublime, gosto de sentir a divisão de seu canto e sua respiração que dança no balé de suas construções melódicas.
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Joyce Moreno, uma das artistas mais completas de nosso cancioneiro que canta, toca e compõe magistralmente, interpreta “Saudade dos aviões da Panair”. A canção traz como protagonista a companhia de viação Panair, que na época consistia na maior do país. Ela foi fechada abruptamente sob forte alegação de perseguição política pela ditadura militar. Boa parte de seus dirigentes estavam associados à democracia e à liberdade de expressão. A música se expressa como uma espécie de memorial coletivo resultando numa canção de protesto suave, mas contudo contundente. “Saudade dos aviões da Panair” elabora num traçado implícito, como centro da cena, o clamor a liberdade e a democracia, consistindo numa brasilidade sonhada. A artista assume um tom de índole confessional que transmite certa suavidade, mas sem apagar a intensidade luminosa do vigor de protesto. Após as potentes gravações de Elis Regina e Mônica Salmaso, Joyce Moreno reinterpreta com sua assinatura preciosa a canção que transcende o ato de intérprete, pois trata-se de uma testemunha agente da geração atingida pela ditadura: “Lá vinha o bonde no sobe e desce ladeira/E o motorneiro parava a orquestra um minuto/Para me contar casos da campanha da Itália/ E do tiro que ele não levou/ Levei um susto imenso nas asas da Panair/ Descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno nas asas da Panair”.
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Sentinela na voz grave e profunda de Dori Caymmi, acompanhado por seu violão, é um dos momentos mais pungentes de “Vendedor de sonhos”. A gravidade da interpretação desse exímio arranjador evidencia a força dos versos de Fernando Brant em casamento com a música de Milton Nascimento. O jogo cromático une o vermelho do sangue ao marrom do chocolate e o negro do vulto. É um canto de dor e inconformismo diante da morte: “Morte e vela, sentinela sou/ Do corpo desse meu irmão que já se vai/ Revejo nessa hora tudo que ocorreu/ memória não morrerá”.
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A memória de Fernando Brant não morrerá.
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Daniela Aragão – foto: acervo pessoal

* Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio RicardoRoberto MenescalJoyce MorenoDelia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, LucinaTuríbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos. Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita Lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”.  Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte.
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