SOCIEDADE

Eliane Brum: O álbum foi jogado no lixo

O álbum
O álbum foi jogado no lixo em um final de semana de agosto. Atirado na calçada estreita da rua Lima e Silva, na Cidade Baixa. O bairro boêmio de Porto Alegre, com bares e sobrados de moradia, velhas famílias e novos bêbados. Era um fim de semana chuvoso, enlutado, quando o velho álbum foi condenado à morte. Álbum de capa preta e verde, um banquete de cupins por cada página de cartão. Ficou ali, ao relento, não se sabe por quanto tempo, misturado aos restos da vida comezinha.
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Um gari de quem não se suspeita o nome olhou para o álbum e recusou-se a carregá-lo. Ou então foi algum passante. Alguém decidiu alterar o destino do álbum. Arrancou-o do lixo e o depositou no prédio rosa, antigo, de número 1170. Atravessou-o pela grade e deixou-o a salvo, esperando que ali vivesse o autor da sentença. Dando ao proprietário daquelas recordações a chance rara de dar marcha a ré no tempo.

Como fazia todos os dias, uma moradora levou o cachorro para urinar na rua e quase tropeçou no álbum. Não quis tocá-lo. Chamou a vizinha Venise de Meneses, que, abismada, o recolheu. Venise tem 48 anos, um casal de filhos quase adultos e diferenciou-se no bairro por um talento singular. Venise costuma dar valor ao que ninguém mais dá. Resgata coisas abandonadas e as recupera, transformando-as em objetos de desejo. Venise tem o dom de dar importância ao desimportante, de dar significado ao insignificante. Por isso foi a escolhida quando a triste figura do álbum foi descoberta, encostada à parede do prédio rosa.
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Venise aconchegou o álbum ao colo e levou-o até o apartamento. Devagar, temendo desfazer algum encanto, mergulhou na vida que o álbum lhe oferecia. Em dois meses, conhecia cada rosto. Teceu caminhos, adivinhou destinos. Enredou-se em cumplicidades. Tentou incursões em busca do dono do álbum, do proprietário daquela vida, mas não encontrou nenhum fio. Como se o álbum tivesse brotado na calçada, os laços todos despedaçados.

Chegou novembro e o álbum seguia queimando as mãos de Venise.
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Embrulhado para presente em papel-manteiga, o álbum que alguém não quis foi despachado para a vida que ninguém vê.
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E talvez coubesse perguntar o que cada um dos envolvidos na salvação do álbum deseja, com desespero e com devoção, salvar realmente. Talvez valesse questionar o que, em verdade, está em jogo. A ameaça contida em um álbum jogado fora, em uma vida atirada ao esquecimento.
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O álbum foi dado com amor a uma moça chamada Carlita. Ou seria velha, a Carlita? Provavelmente moça. Por causa da dedicatória de 11 amigas, no primeiro dia de julho de 1955. Seria aniversário de Carlita? Casamento? Crisma? Como saber? O que essas 11 mulheres desejavam a Carlita naquele dia? Iara, Clara, Eny, Cleonita, Lêda, Lory, Olga, Alice, Irma, Celina e Helena. O que se deseja a alguém quando se dá um álbum? Um álbum vazio é uma vida a ser preenchida, um destino por escrever. O que se desejaria a uma moça em 1955? Um marido, provavelmente. Com a pinta do Marlon Brando. Filhos, quase com certeza. Mas não apenas isso. Uma pequena subversão, talvez. Aventuras, Hollywood, o mundo. Um álbum em branco é todo possibilidade. Como são as vidas em seu início. As vidas ainda por viver.

As moças – as de ontem e as de hoje, as de sempre – sonham com uma vida que não seja a de suas mães. Uma vida onde o coração bata não por hábito, mas por gozo. Carlita, provavelmente – e tudo com respeito ao álbum é somente probabilidade –, não seria diferente.
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Seu álbum se inicia contando a história de quem teve o cuidado de recolher cada rosto de sua vida. Os gravados em seu destino e também os fugazes. É um álbum feito de idas e vindas. Avança a década de 60, recua aos anos 30, em vaivém descontínuo.

O que esse álbum, guardado com zelo por mais de 40 anos, fazia numa lixeira de Porto Alegre? Com fotos arrancadas, peças roubadas do quebra-cabeça. Como olhos vazados em um rosto. De quem era a mão que o sentenciou? Que paixão a movia? Ou seria apenas uma mão indiferente que encontrou um álbum que não lhe dizia respeito no fundo de uma gaveta? Ou teria sido carregado por um ladrão descuidado que mais tarde despojou-se do que acreditava sem valor? Como saber se o crime foi premeditado? Passional ou casual?
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Carlita, certamente, nunca imaginou que esse fosse o destino último de sua vida. Talvez ela seja a moça de cabelos negros e olhar meigo das primeiras páginas. Junto ao homem que raramente parece vê-la. Mas essa é uma história para depois. Suas raízes talvez estejam cravadas na casa de tábuas, humilde e generosa, plantada sobre uma propriedade rural. Uma família numerosa, orgulhosa do trabalho. Orgulhosa de sua terra, do lar construído. O rapaz com pose de James Dean sobre a bicicleta estalando de nova, o menino com a gaita, a noiva com o buquê de copos-de-leite. A matriarca dando milho às galinhas, moendo cana, mexendo a geleia no tacho com larga colher de pau. Os homens com a enxada nas costas, a cavalo. A semente e as colheitas. As pequenas conquistas que tecem uma vida verdadeira. Porque a vida nada mais é do que essa trama de detalhes que só fazem sentido para quem os viveu. E que mais tarde se desfazem no tempo. Ou no lixo. Porque ninguém mais dialoga com eles. Porque jazem obsoletos como uma língua morta.

A casa onde talvez tenha nascido Carlita é feiosa, mas viva. Tem meninos que posam para o retrato com polegares pendurados no cós das calças como cowboys do cinema. Tem meninas que se enfeitam com vestidos de pano xadrez como mocinhas da cidade. Tem raras visitas à capital. Veraneios em Torres. E as fatiotas envergadas para a ocasião da fotografia.
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Incômodas domingueiras sobre a poeira, sob o sol que queima. Necessárias para provar que vieram e venceram. Conquistaram seu lugar na Terra. Têm um chão, uma casa e uma família. E as pequenas delicadezas que emprestam sentido à sua passagem pelo mundo.
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O álbum se rompe, transmuta-se. Carlita parece que se esvai, desmancha-se em outra vida. A de um espanhol chamado Angel Santos. Seu marido, é possível. Talvez o homem moreno que olha para a câmera quando ela olha para ele.
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Quanto mais a vida de Angel se esparrama pelas páginas do álbum, mais a de Carlita desaparece, fundida à outra. É diversa agora a família que povoa o álbum. Família de Lugo, na Espanha. Família partida quando Angel abandona a Galícia por razões que não se presume. Tecida por homens e mulheres vestidos de preto, eles de colete, elas com a cabeça coberta pelo lenço. Também eles tão iguais, comemorando suas pequenas vitórias, registrando também as desditas, porque na vida há o tempo da fartura e o da falta. E aceitar o imutável dessa lógica é parte do segredo de viver.
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Pilar e Aniceto são os irmãos de Angel. Conchita e Manolito, os sobrinhos. É Conchita, com seus olhos de corça, quem passa a escrever o álbum, contando ao tio “y su mujer” o que transcorre na terra de antes. Dedicada, atenciosa, como é essa espécie de mulher a quem cabe amalgamar a família que se desfaz entre dois mundos. Doce Conchita que vai narrando a vida no outro lado do oceano. Os nascimentos, os casamentos, as mortes. O ritual da vida em qualquer parte.
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A vida como um filme em língua estrangeira. A vida de Angel, que não se revela como Carlita. Que deixa que outros a contem. Até quase o final. Que anseios haveria no coração desse espanhol? Por que partiu de sua Espanha? Com que sonharia ele? De que matéria era feita sua saudade? Angel não diz. Não ainda.

É um álbum desordenado todo ele. Como são as vidas. Essa é, em parte, a diferença entre a vida e a literatura, onde os personagens, por mais irreverentes, têm todas as saídas e as entradas em cena calculadas, fazem todos um sentido na trama. Na vida, não. Rostos somem e outros aparecem, e outros que sumiram reaparecem mais tarde, e outros nunca mais. E poucas vezes esse entra e sai faz algum sentido, porque na vida tudo é caos e descaminho, tudo é encontro e desconcerto. É por isso também que esse é um álbum estranho. Não apenas porque foi atirado à morte, mas porque é fiel à desordem da existência. Seja de quem for a mão que o reescreveu por último, obedecia a uma lógica diferente da que move a maioria dos humanos, porque não tentou ordenar o caos de sua própria vida.
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A existência, toda e qualquer, é uma mera alternância entre a vida e a morte, entre crianças e velhos. Uma sucessão de nascimentos e enterros, os enterros para lembrar da finitude, e os nascimentos para garantir que a natureza se refaz. Onde o tempo obedece não à linha reta da aspiração humana, mas ao círculo de uma sabedoria mais antiga. Um álbum em círculos povoando a linha de uma, de várias vidas entrecruzadas. Casamentos, colheitas, batizados, copos-de-leite, enterros, gaitas, crismas, bicicletas, saudades, veraneios, casamentos, colheitas, batizados, copos-de-leite, enterros… Detalhes corriqueiros. Tão pouco, tudo.
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O álbum chega ao fim com um solavanco, surpreendente desenlace. O álbum que começa com Carlita termina com Angel. Teria Carlita sucumbido? O que foi feito de seus sonhos, de seus suspiros?
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É um Angel solitário que termina o álbum.
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Quanta ironia a dele, ao escolher a última página para colar a foto de duas coristas que deixaram um rastro de seu perfume adocicado na Porto Alegre dos anos 60. O álbum que se inicia com o mosaico de rostos da vida de Carlita se encerra com as coxas opulentas da mulata Isa de Souza, que ocupou o palco do antigo Teatro Palermo e, talvez, também o coração e a cama do suposto marido.
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Mas não condenem esse Angel sobre quem há tão poucas certezas. Talvez ele tenha tentado avisar que a vida não é feita apenas de claridades. Talvez tenha alertado que há algo de selvagem sobre a superfície envernizada de todas as existências. Talvez tenha tentado escapar de qualquer redução e escolhido a verdade. Talvez tenha desejado que o compreendessem por inteiro. Talvez não tenha pensado nada disso e tenha sido outro que decidiu delatar o oculto em Angel.

O álbum é misterioso como são todas as vidas. Misteriosas e prosaicas, com sua vitrine de sentimentos desentendidos. O álbum que se inicia com a dedicatória a Carlita, com a inocência de seu nome, se encerra com a letra de Angel fazendo sua própria confissão, seu testamento na língua natal. Amargo, um pouco. Destroçado, com certeza. Ambíguo como sugere o nome. O álbum que começa como promessa termina como lamento. A vida no meio.
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É assim que Angel escolheu encerrar o álbum que se iniciou com Carlita:
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Al llegar a la página postrera
de la tragicomedia de mi vida,
vuelvo mi vista al punto de partida
con el dolor del que ya nada espera
Cuanta bella ilusión que fue quimera!
cuanta noble ambición desvanecida!
Sembrada está la senda florecida
con las flores de aquella primavera!
En esta hora fúnebre y sombría,
de severa verdad y desencanto,
de sereno dolor y de agonia,
Es mi mayor pesar, es mi quebranto
no haber amado más, yo que creía
yo que pensaba haber amado tanto.
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Marcos Antonio Dutra tem as lembranças de seu primeiro, terceiro, quinto e décimo aniversários no álbum. Ele faz 50 anos no dia 24. Mora na zona norte de Porto Alegre, tem dois filhos, trabalha na Caixa Econômica Federal. Quase não tem mais cabelos. Ele não sabe que papel desempenhou nessa tragicomédia. Sequer conhece Carlita ou Angel. Não reconhece rosto algum além do seu. Marcos desconhecia ter sua face impressa nessa vida enovelada entre tantas.

Uma vida só faz sentido para quem a viveu. Para todos os demais é um quebra-cabeça onde nada encaixa. Toda fotografia é puro anseio por permanência, por salvar o que já não existe, agarrar o que escapou. Um álbum esquecido está roubado na essência. Porque um álbum só existe para recordar, manter a vida viva. Por isso arde. Por isso três estranhos desafiaram as moiras e teceram um novo fio para ele.
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Para que cada um e todos possam salvar suas próprias vidas por mais algum tempo. E contrariar, enquanto possível, o que Angel Santos tão bem adivinhou. A quimera que acaba por se tornar tudo que já não é. Ou nunca foi.
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[20 de novembro de 1999]
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Eliane Brum, no livro “A vida que ninguém vê“. [prefácio Marcelo Rech; posfácio Ricardo Kotscho]. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2006

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