SOCIEDADE

Eduardo Galeano: Guerra da rua, guerra da alma

Aqui apresentamos 6 micro contos do escritor uruguaio Eduardo Galeano, todos sobre a temática da ‘Guerra da rua, guerra da alma’
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Guerra da rua, guerra da alma
Cada uma de minhas metades não poderia existir sem a outra. Pode-se amar a intempérie sem odiar a jaula? Viver sem morrer, nascer sem matar?
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Em meu peito, arena de touros, lutam a liberdade e o medo.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Guerra da rua, guerra da alma
De repente, estou debaixo de céus alheios e terras onde se fala e se sente de outro modo e até a memória fica sem gente para dividir ou lugares para se reconhecer. É preciso batalhar duro para ganhar o pão e o sono, e a gente fica meio aleijado com tanta coisa faltando.
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Em seguida chega uma tentação de choramingar, o viscoso domínio da nostalgia e da morte, e corre-se o risco de viver com a cabeça virada para trás, viver morrendo, que é uma maneira de dar razão ao sistema que despreza os vivos. Desde que éramos pequenos, na hipocrisia dos velórios, nos ensinaram que a morte é uma coisa que melhora as pessoas.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Guerra da rua, guerra da alma
Seremos capazes de aprender a humildade e a paciência?
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Eu sou o mundo, mas muito pequenino. O tempo de um homem não é o tempo da História, embora, tenho de reconhecer, bem que eu gostaria que fosse.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Guerra da rua, guerra da alma
Quantas vezes fui um ditador? Quantas vezes um inquisidor, um censor, um carcereiro? Quantas vezes proibi, aos que mais queria, a liberdade e a palavra? De quantas pessoas me senti dono? Quantas condenei pelo delito de não serem eu? Não é a propriedade privada das pessoas mais repugnante que a propriedade das coisas? A quanta gente usei, eu, que me acreditava tão à margem da sociedade de consumo? Não desejei ou celebrei, secretamente, a derrota dos outros, eu que em voz alta me cagava no valor do êxito? Quem não reproduz, dentro de si, o mundo que o gera? Quem está a salvo de confundir seu irmão com um rival, e a mulher que ama com a própria sombra?
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Guerra da rua, guerra da alma
Escrever tem sentido? A pergunta me pesa na mão. Se organizam alfândegas de palavras. Para que nos resignemos a viver uma vida que não é a nossa, nos obrigam a aceitar como própria uma memória alheia. Realidade mascarada, estória contada pelos vencedores: talvez escrever não seja mais que uma tentativa de pôr a salvo, em tempos de infâmia, as vozes que darão testemunho de que aqui estivemos e assim fomos. Um modo de guardar para os que ainda não conhecemos, como queria o poeta catalão Salvador Espríu, “o nome de cada coisa”. Quem não sabe de onde vem como pode averiguar aonde vai?
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Guerra da rua, guerra da alma
Persigo a voz inimiga que me ditou a ordem de estar triste. Às vezes, acontece de eu sentir que a alegria é um delito de alta traição, e que sou culpado do privilégio de continuar vivo e livre.
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Então me faz bem recordar o que disse o cacique Huillca, no Peru, falando ante as ruínas: “Aqui chegaram. Romperam até as pedras. Queriam fazer-nos desaparecer. Mas não conseguiram, porque estamos vivos e isso é o principal”. E penso que Huillca tinha razão. Estar vivos: uma pequena vitória. Estar vivos, ou seja: capazes da alegria, apesar dos adeuses e dos crimes, para que o desterro seja a testemunha de outro país possível.
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A pátria, tarefa por fazer, não vamos levantá-la com ladrilhos de merda. Serviríamos para alguma coisa, na hora do regresso, se voltássemos quebrados?
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Requer mais coragem a alegria que a pena. À pena, afinal de contas, estamos acostumados.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.

> Leia outros contos, ensaios e crônicas de Eduardo Galeano aqui.

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