sábado, junho 14, 2025

Das palavras aéreas – Cecília Meireles

Romance LIII ou Das palavras aéreas
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
ai, palavras, ai, palavras,
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma!
Sois de vento, ides no vento,
e quedais, com sorte nova!
.
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta;
o mel do amor cristaliza
seu perfume em vossa rosa;
sois o sonho e sois a audácia,
calúnia, fúria, derrota…
.
A liberdade das almas,
ai! com letras se elabora…
E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam…
.
Detrás de grossas paredes,
de leve, quem vos desfolha?
Pareceis de tênue seda,
sem peso de ação nem de hora…
— e estais no bico das penas,
e estais na tinta que as molha,
e estais nas mãos dos juízes,
e sois o ferro que arrocha,
e sois barco para o exílio,
e sois Moçambique e Angola!

Ai, palavras, ai, palavras,
íeis pela estrada afora,
erguendo asas muito incertas,
entre verdade e galhofa,
desejos do tempo inquieto,
promessas que o mundo sopra…
.
Ai, palavras, ai, palavras,
mirai-vos: que sois, agora?
.
— Acusações, sentinelas,
bacamarte, algema, escolta;
— o olho ardente da perfídia,
a velar, na noite morta;
— a umidade dos presídios,
— a solidão pavorosa;
— duro ferro de perguntas,
com sangue em cada resposta;
— e a sentença que caminha,
— e a esperança que não volta,
— e o coração que vacila,
— e o castigo que galopa…
.
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Perdão podíeis ter sido!
— sois madeira que se corta,
— sois vinte degraus de escada,
— sois um pedaço de corda…
— sois povo pelas janelas,
cortejo, bandeiras, tropa…
.
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Éreis um sopro na aragem…
— sois um homem que se enforca!
– Cecília Meireles. Do “Romanceiro da Inconfidência” / Obra Poética – Volume Único. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 3ª ed., 1987.

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