Se estivéssemos na época do vinil, certamente, a faixa já teria arranhado no trecho “O coração / Apertado no peito / É um jeito sem jeito / De encarar a questão”. Escuto, com encantamento, a maneira como Gustavo Baião estende as notas da palavra “coração”. Uma entre tantas marcas de sua assinatura vocal, plena de personalidade, que encontro no tão belo disco dedicado à interpretação de composições do pianista, arranjador e compositor Gilson Peranzzetta.
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Tive a satisfação de cruzar uma vez na vida com Gilson Peranzzetta, no estúdio de Sergio Lima Netto, em Araras. Eu e o pianista Márcio Hallack saíamos da cabine de gravação, eufóricos, após termos feito o único (e definitivo) take da desafiadora “Amor Amor”, de Sueli Costa e Cacaso. Márcio, que já era amigo de longa data e parceiro de trabalho de Peranzzetta, feliz pelo encontro inesperado, convidou-o para ouvir em primeira mão nossa gravação crua.
Silencioso e atento, Peranzzetta escutou a canção até o soar da última nota e pediu-nos que não alterássemos nada. No mesmo dia, já afastado do estúdio, ele nos telefona no final da tarde e reafirma sua opinião “-Vocês não devem mexer em nada”. Claro que seguimos o mestre do som.
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O coração aperta no peito diante da audição de tamanha beleza, que marca o encontro musical entre Gustavo Baião e Gilson Peranzzetta. Tudo é visceralmente vivido, sentido, em cada acorde, em cada nuance de levitar de dedos de Peranzzetta nas teclas do piano.
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“Setembro”, parceria instrumental do pianista com Ivan Lins, ganha uma introdução cool, desenhada pela precisão e suavidade com que Baião passeia pelo traçado melódico. O profundo entendimento de cada abismo e céu das entranhas sonoras faz com que Baião ora mergulhe na densidade de notas graves, ora alce voos ascensionais recheados de luminosidade. O contrabaixo encorpado de Zeca Assumpção, em diálogo com a bateria softy de João Cortez e o piano de Peranzzetta é um convite a um encontro com a beleza em sua mais elevada instância.
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Imagino o quão tortuoso deve ter sido para Baião conseguir escolher apenas dez composições, entre um universo de maravilhas criadas por Peranzzetta. “Love dance” (Peranzzetta / Ivan Lins / Paul Williams), viajou por vozes e instrumentos no Brasil e exterior. Deve-se lembrar, que além de exímio pianista e compositor, Peranzzetta está entre os maiores arranjadores do mundo, com composições gravadas por Sarah Vaughan, Edu Lobo, George Benson, Toots Thielemans, Dori Caymmi, entre tantos outros.
O amor é protagonista de cenas apreendidas no imaginário dos versos de Aldir Blanc, Ana Terra e Nelson Wellington. Amor que se eleva na solidão contemplativa do nostálgico enamorado, como desponta na singela “Foi por Amor”, “Você mudou / Ouço a frase em inglês / No cd que você/Me deu aquela vez / Em que eu disse que não / O coração apertado no peito / É um jeito sem jeito / De encerrar a questão”. Amor que se expande nos laços de ternura dos afetos fraternos, infinitos e irremediáveis: “Vai ficar no ar / Todo o tempo e mais / Esse amor que a gente tece / A cada dia / E os filhos / Vão nos sufocar / Vão nos atrair / Esse amor que enlouquece / E nos vicia/Sempre mais”. Amor que floresce no inesperado encontro inaugural, imbuído de sensações levitantes: “No primeiro olhar / Deu pra imaginar / Vai acontecer / Tentei evitar / Mas ao desviar / Vi um céu de estrelas”.
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Há neste disco, acima de tudo, um Amor incomensurável pela música, que comprova a confissão do devotado Peranzzetta “A música é a minha religião, o palco é a minha igreja e o piano é o meu altar, aonde faço as minhas orações”. Esta obra é para ser degustada em infindáveis audições, pois apresenta uma riqueza de inferências sonoras, que mesmo diante de ouvidos muito experimentados, são impossíveis de ser desveladas sem uma entrega detida do ouvinte. Faço-me ouvinte devotada da criação sublime de Gilson Peranzzetta. Amém.
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DO DISCO ‘GUSTAVO BAIÃO: CANÇÕES DE GILSON PERANZZETTA’

Disco ‘Canções de Gilson Peranzzetta’ • Gustavo Baião • Selo Fina Flor • 2015
Canções / compositores
1. Sonho de válvulas (Gilson Peranzzetta e Aldir Blanc)
2. Sorriso de luz (Gilson Peranzzetta e Nelson Wellington)
3. Vai ficar no ar (Gilson Peranzzetta, João Cortez e Ana Terra) | Participação Leila Pinheiro
4. Setembro (Gilson Peranzzetta e Ivan Lins)
5. Na trilha das safiras (Gilson Peranzzetta e Aldir Blanc) | Participação João Senise
6. Ressurgir (Gilson Peranzzetta e Nelson Wellington)
7. Love dance (Gilson Peranzzetta, Ivan Lins e Paul Williams) | Participação Célia Vaz
8. Foi por amor (Gilson Peranzzetta e Aldir Blanc)
9. Delírio (Gilson Peranzzetta e Nelson Wellington)
10. Tanto mar (Gilson Peranzzetta e Gustavo Baião)
11. Cicatrizes na alma (Gilson Peranzzetta e Nelson Wellington)
12. Virá (Gilson Peranzzetta, Ivan Lins e Vitor Martins)
– ficha técnica –
Gustavo Baião (voz) | Gilson Peranzzetta (piano) | Zeca Assumpção (baixo) | João Cortez (bateria) | Participação especial: Leila Pinheiro (voz – fx. 3) | João Senise (voz – fx. 5) | Célia Vaz (voz – fx. 7) | Produção, direção musical e arranjos: Gilson Peranzzetta | Técnico de gravação e mixagem: Sérgio Lima Netto | Masterização: Luigi Hoffer | Selo: Fina Flor | Cat. 056 | Formato: CD | Ano: 2015 | Lançamento: 10 de setembro | ♪Ouça o álbum: Spotify / Deezer / Apple Music / Youtube.

* Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estêvão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Ro Ro, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos. Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita Lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”. Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte.
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