Iniciar a primeira crônica do ano é sempre um desafio, ainda mais cercada de tantos assuntos urgentes que sucedem numa velocidade inapreensível. Como meu tema predileto é música, revelo aos leitores meu desconsolo por ter deixado o ano passado esvair sem que conseguisse escrever sequer uma linha em homenagem a um dos mais esplêndidos músicos deste país: Edu Lobo. Diante de artistas muito grandiosos, encolho-me bem aos moldes de mineira tímida e desconfiada. Trata-se de certo pudor comportamental, existencial, seja lá o que for, receio tocar em mitos. Passei cerca de quatro meses ouvindo o último cd de Chico Buarque até que ele adentrasse inteiramente por todos os meus poros, daí então tomei coragem e celebrei numa crônica seus setenta anos. Milton Nascimento é outra entidade entre os septuagenários que ocupa minha alma faz tempo com “Milagre dos peixes”, “Minas”, “Clube da esquina” e “Sentinela”. Vou prolongando as audições adiando o fatídico momento do embate com o deserto da página em branco.
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Como é manhã de janeiro com céu muito azul e sol quente, ouço as crianças do prédio vizinho fazendo mil arruaças nesse momento “refrescante” de férias. Ponho para tocar “O grande circo místico”, obra prima da parceria Edu Lobo e Chico Buarque e tento ao menos em minha imaginação apaziguá-las com um banho de lirismo. Começo por “A história de Lily Braun”, a gravação definitiva de Gal Costa que embalou boa parte de meus sonhos adolescentes: “Como num romance / O homem dos meus sonhos / Me apareceu no dancing / Era mais um / Só que num relance / Os seus olhos me chuparam / feito um zoom”. Colocava na vitrola essa faixa para tocar inúmeras vezes e ficava tentando reproduzir da melhor maneira possível os agudos afinados e extensos que Gal brilhantemente ia entoando no final da canção. Certamente é uma aula de música ouvi-la acompanhada pela pulsante Big Band. Não sei qual impulso motivou décadas após este primeiro registro, a regravação quase simultânea desta música pelas cantoras Maria Gadú, Maria Rita e Mônica Salmaso. Há músicas que subitamente readquirem valor num revival Cult, vá lá entender. Cada uma com sua leitura própria, mas que a meu ver ficam aquém da versão original. Parece-me que faltam nas novas versões o brilho e o vigor que Gal conseguiu alcançar, possivelmente devido ao fato de que sua gravação fazia parte de um amplo contexto, ou seja, a história do álbum “O grande circo místico”.

O disco “O grande circo místico” evolui numa espécie de encadeamento temático que nos transporta para o comovente universo do circo com seus personagens belos e sedutores (Ciranda da Bailarina / A história de Lily Braun), assustadores e trágicos (A bela e a fera), cômicos e tristes (Valsa dos Clowns). O tênue fio da vida sustentado pelo sonho dos passos perfeitos da bailarina e pela máscara feliz do palhaço, que no escuro da cena esconde suas lágrimas de neblina, ai Gelsomina Giulietta: “Não / Não sei se é um truque banal / Se um invisível cordão / Sustenta a vida real”. A vida com suas chegadas e partidas que deixam a ânima do artista e do público borbulhando de dor, alegria, prazer e saudade. Meio tontos e lambuzados de cores, poeiras, brilhos e suores, na bagagem da luta infinda prosseguem os artistas-malabaristas: “Voar, fugir / Como o rei dos ciganos / Quando junta os cobres seus / Chorar, ganir / Como o mais pobre dos pobres / Dos pobres dos plebeus / Ir deixando a pele em cada palco / e não olhar pra trás / E nem jamais / jamais dizer / Adeus”.
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A parceria entre Edu Lobo e Chico Buarque não se esgota em “O grande circo místico”. Continua em outras peças como “O corsário do Rei”, “Dança da meia-lua” e “Cambaio”, além de uma profusão de composições sublimes como “Choro bandido”, “Valsa Brasileira” e “Moto contínuo”.

Nos tempos de agora, intensamente e brutalmente o sucesso, a fama e o estrelato destituído de qualquer filigrana de talento consistem no imperativo da ordem capitalista do show business. A sabedoria e humildade do jovem Edu Lobo o levaram na década de sessenta a deixar os palcos e os apelos da grande indústria de criação de ídolos. Ele saiu silenciosamente de cena no momento em que era exaltado como o galã compositor bicampeão na era dos festivais. Edu não se deslumbrou com o sucesso e recolheu-se para estudar música profundamente, garantiu assim a custo de muita dedicação e talento domínio pleno dos quesitos harmonia, melodia e arranjo instrumental. Em depoimento registrado na recém lançada biografia escrita por Eric Nepomuceno*, o compositor revela: “…eu tinha grande dificuldade na hora de explicar para os arranjadores o que esperava. No meu primeiro disco, por exemplo, eu não conseguia dizer para o Luiz Eça o que eu queria com a música. Como não sabia ler partituras, acabava usando palavras absurdas. Tentava inventar um dialeto que fosse compreensível. Dizia, por exemplo: “Luizinho, eu queria que você começasse com uma acorde mais gordo, e depois ir afinando…Ora, ninguém entende isso. Eu ficava com pena dele e com vergonha de mim. Então, aprender a ler música mudou minha vida. Para um músico, isso é como aprender a ler palavras. Quando ouço música lendo a partitura – tenho orgulho da minha coleção de partituras-, capto tudo que tenho de captar, não me distraio, não perco o rumo”.
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Percorrer a fundo a obra deste engenhoso músico demanda entrega e sobretudo apuração auditiva, Edu Lobo é um ourives da música que lapida suas preciosidades com a precisão de um ourives. “Limite das águas”, lançado ainda no formato LP em 1976, é uma obra impecável do começo ao fim. Junto com Maurício Maestro, Edu divide a responsabilidade pelos arranjos e orquestração, enquanto a regência fica por conta do maestro Lindolfo Gaia. Considerando é simplesmente uma obra prima com os versos densos e de feição confessional de Capinam: “Considerando o naufrágio / A rotina dos barcos / Eu me achei no direito / De ao menos, pedir / Tempo claro pro meu rumo / E nos temporais da febre/De quem fuma, de quem bebe / As longas noites vazias // Eu sou o homem comum / Eu sou a mulher da rua / O vagabundo poeta / O navegante da lua”.

Aos 33 anos, Edu Lobo demonstrava o amadurecimento musical e existencial adquirido ao longo do percurso, tanto que cinco anos depois, gravou com produção e direção de Aloysio de Oliveira um disco monumental ao lado de nada menos que Tom Jobim. Edu dialoga com o refinamento de Tom e suas concepções de improvisos leves. O casamento musical desses dois estupendos músicos resulta numa das obras referenciais da história de nosso cancioneiro nacional. O belo timbre de Edu, que canta muitíssimo bem, soa bonito demais em contraste com o registro grave da voz de Tom. O encontro destes dois pilares da música moderna brasileira marcou uma sorte de união entre professor e aluno, num clima de cordialidade e admiração mútua: “De todos os arquitetos da música que conheço, Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim é, sem dúvida, o de traço mais amplo e perfeito. Dele surgem projetos sólidos, feitos para abrigar os corações do mundo”. “O Edu é um compositor fabuloso, formidável. É, extraordinário, no Edu, essa brasilidade dele. A gente vê uma pessoa empenhada em construir uma obra”.
— Crônica de Daniela Aragão, escrita em janeiro de 2015 —
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:: *Edu Lobo: são bonitas as canções – Uma biografia musical. de Eric Nepomuceno. Edições de Janeiro, 2014.

revistaprosaversoearte.com - 'Considerando', crônica de Daniela Aragão
Daniela Aragão – foto: acervo pessoal

** Daniela Aragão (1975) é doutora em literatura brasileira pela Puc-Rio, cantora e pesquisadora musical. Há mais de duas décadas desenvolve trabalhos sobre a história do cancioneiro brasileiro, com trabalhos publicados no Brasil e no exterior. Gravou em 2005 o disco “Daniela Aragão face A Sueli Costa face A Cacaso”. Há mais de uma década realiza entrevistas com músicos de Juiz de Fora e de estatura nacional. Entre os entrevistados estão: Sergio Ricardo, Roberto Menescal, Joyce Moreno, Delia Fischer, Márcio Hallack, Estevão Teixeira, Cristovão Bastos, Robertinho Silva, Alexandre Raine, Guinga, Angela Rô Rô, Lucina, Turíbio Santos… Seu livro recém lançado “De Conversa em Conversa” reúne uma série de crônicas publicadas em jornais e revistas (Cataguases, AcheiUSA, Suplemento Minas, O dia, Revista Revestrés, Cronópios…) ao longo de quinze anos. Os textos de Daniela Aragão são reconhecidos no meio musical devido a sua considerável marca autoral e singularidade, cuja autora analisa minuciosamente e com lirismo obras de compositores e cantores como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Rita Lee. O livro possui a orelha escrita pelo poeta Geraldo Carneiro, prefácio do pesquisador musical e professor da Puc-Rio Júlio Diniz, contracapa da cantora e compositora Joyce Moreno e do pianista e arranjador Cristovão Bastos. Irá lançar em 2022 seu livro “São Mateus – num tempo de delicadezas”.  Colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. #* Biografia completa AQUI!
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