Achille Mbembe é um filósofo camaronês cuja leitura, aos meus olhos, é fundamental para compreensão do mundo tão desigual que vivemos. Ainda que inspirado pelas obras de Giorgio Agamben e Michel Foucault, Mbembe tem uma produção biopolítica voltada para a realidade do Sul, isto é, para essa parte do mundo que ainda carrega fortemente imbuído em seu presente vestígios de um passado colonialista. Este passado é pautado pela exploração e subjugação de algumas pessoas, leia-se o povo originário desses locais e dos negros escravizados em alguns deles, em detrimento da afirmação da superioridade do branco face aos demais.

Apesar das nuances existentes entre cada país há, sem dúvida, aspectos comuns que os unem, seja em sua história ou nos reflexos dele na atualidade. Sendo assim, a contribuição decolonial da filosofia de Achille Mbembe para temas urgentes como o racismo, sabidamente a mola propulsora de tantas violações de direitos, é imprescindível. Sua importância vai além do fato de ser um autor não eurocêntrico, Mbembe, que é negro, pensa a bio e a tanatopolítica a partir de uma ótica muito mais aproximada da realidade brasileira e também pelo prisma de sua negritude.

Muito há que se falar sobre a obra mbembiana e, com a retomada da escrita para a Prosa, Verso e Arte, pretendo fazê-lo partindo de distintos recortes. No entanto, para fins de mínima concisão do texto de hoje, sigo o conteúdo que imagino ser primeiro para compreensão da obra biopolítica de Mbembe que é bastante marcada pela pauta racial: o que é, segundo autor, ser negro.

Em Crítica da Razão Negra (2014), Achille Mbembe discorre sobre o substantivo Negro e a noção de raça. O autor inicia sua obra pontuando que o europeu não enxerga um mútuo pertencimento de brancos e negros em um mesmo mundo. Considero importante frisar que nem mesmo essa compreensão determinou a manutenção destes indivíduos em seus respectivos locais de origem, pelo contrário, justamente por ser o Negro aquele “que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender” (MBEMBE, 2014, p. 11) foram compulsoriamente retirados destes espaços. O tráfico de pessoas, a escravidão e suas mazelas talvez exemplifiquem bem as razões históricas para o fato, assinalado por Achille Mbembe, de que ninguém deseja ser negro ou, ainda, de ser tratado como tal (MBEMBE, 2014, p. 11).

Esta constatação evidencia o peso decorrente da imensa redução operada com afã de reduzir pessoas a sua aparência e que eleva a raça à causa de crimes e carnificina. Há uma maior atenção, nesse encontro, por parte dos europeus, a tudo aquilo que marca as diferenças entre eles e os indivíduos provenientes dos diversos países que integram a África. Essas diferenças foram tão acentuadas nesse processo que parecia não haver nenhuma espécie de desconforto com o tratamento que era dispensado aos Negros, por exemplo, no Brasil Colônia. Aos olhos dos opressores, aqueles que oprimiam eram não pessoas e, portanto, não havia mal algum no tratamento desumano empregado.

Partindo dessa desumanização e por todas as humilhações e maus tratos a que, historicamente, foram submetidos, Mbembe procura, em linhas gerais, expor o que significa ser Negro[1]:

Além de designar uma realidade heteróclita e múltipla, fragmentada – em fragmentos de fragmentos sempre novos- este nome assinalava uma série de experiências históricas desoladoras, a realidade de uma vida vazia; o assombramento, para milhões de pessoas apanhadas nas redes de dominação de raça, de verem funcionar os seus corpos e pensamentos a partir de fora, e de terem sido transformadas em espectadores de qualquer coisa que era e não era a sua própria vida (…) E não é tudo. Produto de uma máquina social e técnica indissociável do capitalismo, da sua emergência e globalização, este nome foi inventado para significar exclusão, embrutecimento e degradação, ou seja, um limite sempre conjurado e abominado. Humilhado e profundamente desonrado, o Negro é, na ordem da modernidade, o único de todos os humanos cuja carne foi transformada em coisa, e o espírito, em mercadoria – a cripta viva do capital (MBEMBE, 2014, p. 19)(grifos meus).

Mais adiante, o autor desenvolve a noção do Negro como produto ao afirmar que o Negro não existe enquanto tal (MBEMBE, 2014, p.40), isto é, antes de assim ser nomeado pelo europeu este indivíduo era apenas ele mesmo, livre de estigmas ou projeções sobre sua existência pautadas pelos brancos. Vivia sua vida, portanto, normalmente e sem se atentar para o fato de que a cor de sua pele, destoante da brancura européia, pudesse representar algum risco à sua vida e liberdade. Por isso, afirma o autor que o Negro é constantemente produzido (MBEMBE, 2014, p.40). Como resultado desta produção há “um vínculo social de submissão e um corpo de exploração, isto é, um corpo inteiramente exposto à vontade de um senhor, e do qual nos esforçamos para obter o máximo de rendimento” (MBEMBE, 2014, p. 40).

Disto decorre também a noção de que o Negro não integra a massa de indivíduos que são titulares de direitos assegurados aos habitantes das colônias. Não surpreende, portanto, a afirmação de Achille Mbembe (2014, p.42) no sentido de que “desde logo, não são homens como os outros”. O Negro como uma não pessoa é excluído, dada esta condição, da esfera cidadã. Importante, nesta toada, recordar que, no Brasil, o negro foi incluído no direito para ser penalizado através do Código Penal do Império.

Ainda hoje são fartos os exemplos que corroboram não com a negação, propriamente dita, da titularidade de direitos por parte dos negros, mas, especialmente, com a facilidade com que se flexibilizam seus direitos. O direito primeiro que temos, o direito à vida, por exemplo, é sistematicamente posto de lado nas periferias em nome da legítima defesa policial prevista no instituto do auto de resistência – assunto já abordado em coluna anterior, escrita por mim, Gilberto Santiago e Gabriela Fenske. Evidentemente que, em casos pontuais e extremos, o auto de resistência é adequado para enquadrar conduta extrema, única hipótese de salvaguardar o policial em confronto, com fito de preservação de sua vida. No entanto, a prática do instituto aponta para sua banalização, tornando a morte de supostos adversários um recurso amplamente utilizado, sem critérios que refinem a opção pelo homicídio. Ademais, inocentes são mortos pela polícia conforme explicita Orlando Zaccone em sua obra Indignos de Vida (2016). Interessante, para findar estes breves comentários acerca do referido instituto, frisar a existência de um perfil estatisticamente delimitado de seu alvo: o corpo negro, jovem, do sexo masculino e que cai, quase sempre, em regiões pobres brasileiras.

Passados tantos anos após a abolição, ainda é preciso indagar sobre o efetivo encerramento da escravidão e, principalmente, das muitas distinções feitas a partir dela, no Brasil, entre negros e brancos. Um país com um passado como o nosso, tão maculado pela exploração compulsória da mão de obra de indivíduos traficados e de toda a desumanização que caminha de mãos dadas com ela, ainda não se reconciliou com sua história. Ao contrário, há quem teime em defender a convivência pacífica entre as distintas raças que aqui se encontraram desde os tempos de casa grande e senzala até os dias de hoje em que ainda vige, no imaginário de uns, uma grande democracia racial no Brasil.

Não há que se falar em progresso (como, na atualidade, alguns tem, novamente, gostado de bradar) enquanto essa reconciliação não for posta em prática. A negação da persistência da valorização do que nos torna diferentes passa pelo não reconhecimento das tensões sociais oriundas deste passado escravocrata. Uma situação bastante ilustrativa deste cenário é a construção de um museu dedicado ao amanhã na zona portuária da cidade do Rio de Janeiro, local por onde entraram negros dos mais distintos lugares do continente africano, em espaço que, no passado, abrigara um cemitério para aqueles que não sobreviveram os horrores da viagem até aqui. Como país que recebeu o maior número de negros para fins de exploração de sua mão de obra (e de suas existências como um todo) não nos é dado o direito de esquecer a nossa história: é preciso, portanto, olhar para o passado, reconhecer erros e cuidar para que nada nem parecido nos assole novamente.

[1] Reproduzo nesta coluna, sempre que em referência à obra deste autor a palavra negro grafada com a inicial maiúscula, como faz Mbembe. O autor faz uso recorrente desta forma de escrita, embora não apresente uma explicação para tal. De igual modo e pela mesma razão procedo em relação a palavra resto.
Referências do texto:
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. [tradução de Marta Lança]. Lisboa: Antígona, 2014.
______. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. [tradução de Renata Santini]. 2ª. edição. São Paulo: N-1 Edições, 2018.

ZACCONE, Orlando. Indignos de vida: a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro. Editora Revan: Rio de Janeiro, 2016.

Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as (quase sempre!) com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes e mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense é fã de Amy Winehouse, Foucault, Picasso e roupas de poá.

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