Os olhos azuis oceânicos, debaixo de tufos de sobrancelhas grisalhas, quase ruivas, caracterizavam a lente humana mais majestosa e universal que já existiu na fotografia mundial.
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O mineiro de Aimorés, Sebastião Salgado, fez o mundo piscar de modo distinto depois de suas pálpebras.
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Ele se despede, aos 81 anos, com um trabalho documental que conseguiu a proeza de ser, ao mesmo tempo, transgressor e clássico.
Trouxe à fotografia o projeto coletivo dos murais de Candido Portinari.
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Na essência, era um Caravaggio da gelatina de prata, do papel fotográfico, mestre do claro-escuro, instaurando o barroco na captação crua das cenas.
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Assim como em Caravaggio, a luz recai sobre os invisíveis — os pobres, os errantes, os exilados — com uma expressividade humanista e dramática.
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Sua única professora foi a realidade, com seus contrastes e exuberâncias, suas misérias e rostos impregnados de compaixão. Formado em Economia, mas autodidata na arte, começou a fotografar em 1973, aos 29 anos, misturando-se em unha e carne aos seus fotografados.
Seu olhar não era de fora, mas de dentro. Não agia como um observador distante, que clica e desaparece. Daí a explicação para seus registros íntimos, como se fossem autorretratos dos excluídos. Sua aflição existencial tornou-se sua estética. Não explorava o outro, fundia-se ao outro. Não se resumia a um fantasma entre os vivos, e sim a um vivo que mandava notícias do reino dos fantasmas da sociedade.
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Abordou as migrações, a dizimação dos povos originários, a devastação das florestas, o colapso climático, a escalada desenfreada do processo industrial.
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Não procurava apontar as diferenças folclóricas entre as mais remotas culturas, mas identificar o que havia de comum entre todas elas: a dignidade apesar da desolação.
Ele converteu as cores gritantes da dor na suavidade bíblica do preto e branco. Denunciou o apocalipse e a extinção da nossa espécie pela ganância.
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Percorreu mais de 130 países, criando exposições que marcaram a história: Trabalhadores, Gênesis e Êxodos.
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Deixa para nós os seus olhos pesados de lágrimas. Sangue de nosso sangue, água de nossas águas.
— Fabrício Carpinejar —
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