Arte Poética II
A poesia não me pede propriamente uma especialização pois a sua arte é uma arte do ser. Também não é tempo ou trabalho o que a poesia me pede. Nem me pede uma ciência nem uma estética nem uma teoria. Pede-me antes a inteireza do meu ser, uma consciência mais funda do que a minha inteligência, uma fidelidade mais pura do que aquela que eu posso controlar. Pede-me uma intransigência sem lacuna. Pede-me que arranque da minha vida que se quebra, gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. Pede-me que viva atenta como uma antena, pede-me que viva sempre, que nunca me esqueça. Pede-me uma obstinação sem tréguas, densa e compacta.

Pois a poesia é a minha explicação com o universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o meu encontro com as vozes e as imagens. Por isso o poema não fala de uma vida ideal mas sim de uma vida concreta: ângulo da janela, ressonância das ruas, das cidades e dos quartos, sombra dos muros, aparição dos rostos, silêncio, distância e brilho das estrelas, respiração da noite, perfume da tília e do orégão.

É esta relação com o universo que define o poema como poema, como obra de criação poética. Quando há apenas relação com uma matéria há apenas artesanato.

É o artesanato que pede especialização, ciência, trabalho, tempo e uma estética. Todo o poeta, todo o artista é artesão de uma linguagem. Mas o artesanato das artes poéticas não nasce de si mesmo, isto é, da relação com uma matéria, como nas artes artesanais. O artesanato das artes poéticas nasce da própria poesia a qual está consubstancialmente unido. Se um poeta diz «obscuro», «amplo», «barco», «pedra» é porque estas palavras nomeiam a sua visão do mundo, a sua ligação com as coisas. Não foram palavras escolhidas esteticamente pela sua beleza, foram escolhidas pela sua realidade, pela sua necessidade, pelo seu poder poético de estabelecer uma aliança. E é da obstinação sem tréguas que a poesia exige que nasce o «obstinado rigor» do poema. O verso é denso, tenso como um arco, exactamente dito, porque os dias foram densos, tensos como arcos, exactamente vividos. O equilíbrio das palavras entre si é o equilíbrio dos momentos entre si.

E no quadro sensível do poema vejo para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.
– Sophia de Mello Breyner Andresen. Arte Poética II foi publicado pela primeira vez em 21 de Janeiro de 1963. © 2011 Biblioteca Nacional de Portugal.

Apesar das ruínas e da morte,
Onde sempre acabou cada ilusão,
A força dos meus sonhos é tão forte,
Que de tudo renasce a exaltação
E nunca as minhas mãos ficam vazias.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e Outros Poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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Sophia de Mello Breyner Andresen – poeta portuguesa

Mar
I
De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

II
Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e só procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros como um grito puro.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

§§

O jardim e a noite
Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra dos canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente
Calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entre a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou pesado e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

§§

Apolo Musageta
Eras o primeiro dia inteiro e puro
Banhando os horizontes de louvor.

Eras o espírito a falar em cada linha
Eras a madrugada em flor
Entre a brisa marinha.
Eras uma vela bebendo o vento dos espaços
Eras o gesto luminoso de dois braços
Abertos sem limite.
Eras a pureza e a força do mar
Eras o conhecimento pelo amor.

Sonho e presença
De uma vida florindo
Possuída e suspensa.

Eras a medida suprema, o cânon eterno
Erguido puro, perfeito e harmonioso
No coração da vida e para além da vida
No coração dos ritmos secretos.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

§§

Cidade
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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Evohé Bakkhos
Evohé deus que nos deste
A vida e o vinho
E nele os homens encontraram
O sabor do sol e da resina
E uma consciência múltipla e divina.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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Data
   (à maneira d’Eustache Deschamps)

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo que mata quem o denuncia
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rastro
Tempo de ameaça
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

§§

Reza da manhã de maio
Senhor, dai-me a inocência dos animais
Para que eu possa beber nesta manhã
A harmonia e a força das coisas naturais.

Apagai a máscara vazia e vã
De humanidade,
Apagai a vaidade,
Para que eu me perca e me dissolva
Na perfeição da manhã
E para que o vento me devolva
A parte de mim que vive
À beira dum jardim que só eu tive.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

Nesta hora
Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo

Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
– Sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

§§

Fundo do mar
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

§§

Sophia de Mello Breyner Andresen. nasceu em 1919, no Porto, Portugal. Sua obra, que inclui poemas, contos, livros infantis e ensaios, recebeu inúmeros prêmios, como o Camões (1999) e o Reina Sofía (2004). Toda sua poesia foi reunida em Portugal no volume Obra poética (Assírio & Alvim, 2015). Faleceu em 2004.
Saiba mais sobre Sophia de Mello Breyner Andresen – o navegar poético (biobibliografia, poemas, fortuna crítica, desenhos e imagens).

Trevas
O que foi antigamente manhã limpa
Sereno amor das coisas e da vida
É hoje busca desesperada busca
De um corpo cuja face me é oculta.
– Sophia de Mello Breyner Andresen, do livro “Coral e outros poemas” [seleção e apresentação de Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.







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