Literatura

‘Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo…’ – Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

L. do D.

Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o (distraidamente) confere mais apego ao nosso momento de sonhar. Fazer isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e (…) de o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e despejar, futilissimamente.

Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as desmanchar totalmente e minuciosamente.

Pegar em tintas e misturá-las na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo (alongar em fúteis todas as (…) horas). Jogar às escondidas com a nossa consciência de viver.

Esculpir em silêncio nulo todos os nossos sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de acção.

Ouvir as horas dizer-nos que existimos com um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o quadro não só falso mas vão.

Pensar em frases que se contradigam, falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer e compreendê-lo, o que é aliás impossível — que temos consciência de não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar isto tudo por um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto outro-lado-divino, e não acreditar demasiado na explicação para que não hajamos de a abandonar. E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver pária e alheadamente.

Mas as paisagens sonhadas são apenas fumos de paisagens conhecidas e o tédio de as sonhar também é quase tão grande como o tédio de olharmos para o mundo.

s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. (Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1982. – 370.
“Fase confessional”, segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol II. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.

Mais sobre e com Fernando Pessoa:
Fernando Pessoa – o poeta de múltiplos eus
Fernando Pessoa (poemas e textos)

Revista Prosa Verso e Arte

Literatura - Artes e fotografia - Educação - Cultura e sociedade - Saúde e bem-estar

Recent Posts

Tiganá Santana lança o seu sétimo álbum ‘Caçada Noturna’

O cantor, compositor e instrumentista Tiganá Santana lança seu sétimo disco 'Caçada Noturna', pelo selo…

19 horas ago

Chega à Caixa Cultural Rio de Janeiro a Exposição interativa ‘Viajando com Tapetes Contadores’

O grupo Os Tapetes Contadores de Histórias, com 25 anos de uma trajetória premiada e…

1 dia ago

Cia do Despejo estreia o espetáculo de teatro-dança ‘Ireti’, inspirado na mitologia Iorubá

Cia. do Despejo faz crítica à necropolítica brasileira no espetáculo de teatro-dança ‘IRETI’, inspirado na…

2 dias ago

Cia do Polvo estreia espetáculo com técnicas circenses, teatro e dança

Cia do Polvo une a magia do circo com teatro e dança em novo espetáculo Dual .…

2 dias ago

‘Carnaval Futuro’ estreia em maio no Centro Cultural São Paulo

O Núcleo de Criação do Pequeno Ato celebra uma década premiada de trabalho com o…

2 dias ago

Alice Passos e Breno Ruiz lançam ‘Milagres’ na Casa do Choro

Espetáculo da cantora carioca e do compositor paulista acontece no dia 15 de maio, no…

2 dias ago