Compreender o outro não é isentá-lo, mas reconhecê-lo. É aceitar que há beleza até na hesitação, sentido até na confusão, valor até no erro (Paulo Baía)
[crônica 7]
Há uma ternura feroz que precede o julgamento. Uma vibração íntima, quase imperceptível, em que o outro ainda é presença inteira, não reduzida à moldura de nossas certezas. É nesse intervalo — onde a dúvida ainda respira e a sentença não caiu como pedra — que nasce a possibilidade de uma política habitável, profundamente humana. Porque só uma formação política enraizada na democracia reconhece que até a sinceridade equivocada merece espaço. Não como erro a ser apagado, mas como expressão de um desejo autêntico de compreender o mundo. A literatura, a sociologia e a política brotam dessa sensibilidade: o respeito pelo caminho incerto de cada um.
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A democracia mais radical não se impõe com leis, mas se revela no modo como tratamos os outros quando pensam diferente. É uma educação sentimental, uma ética do cuidado que nos ensina a perceber o que há por trás das palavras — o esforço, a intenção, o medo, o amor. Quando se compreende o outro em sua inteireza, mesmo quando ele tropeça, algo se desloca dentro de nós. Surge então um entendimento mais profundo, que não busca vitória, mas vínculo. Nesse espaço, as ideias se tornam mais vivas, mais complexas, mais reais. É ali que nasce o pensamento fértil, o gesto criador, a política que toca o que há de mais essencial no humano.
Não é a pressa por respostas nem o desejo de ter razão que constroem o convívio democrático, mas a disposição de caminhar junto — mesmo quando os caminhos divergem. Uma sociedade que forma pessoas capazes de conviver com as imperfeições alheias é uma sociedade madura. Saber que alguém erra, mas ainda assim deseja acertar, é reconhecer que somos feitos da mesma matéria instável. A boa política não corrige o outro com frieza, mas compreende sua história, sua angústia, suas razões. E a literatura e a sociologia se fazem exatamente assim: com empatia, com profundidade, com a consciência de que ninguém é só o que diz, mas também o que tenta dizer.
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A sinceridade, mesmo quando desastrada, carrega uma centelha de verdade. E só uma visão profundamente humana do mundo é capaz de enxergar essa centelha sem apagá-la. Quando nos tornamos juízes de tudo, perdemos a delicadeza que sustenta a vida comum. A sensibilidade democrática não se manifesta em regras abstratas, mas no modo como nos aproximamos de quem pensa diferente. Há mais humanidade em acolher um erro do que em vencer um debate. E talvez seja exatamente essa disposição que nos salva do cinismo, da indiferença e da violência do pensamento emparedado.
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Vivemos uma era de discursos apressados e verdades rígidas, onde o medo de errar sufoca a criação e o receio de parecer frágil paralisa o pensamento. Por isso, mais do que nunca, precisamos de uma política que compreenda a delicadeza do humano. Não há criação possível sem risco, não há pensamento vivo sem margem para o desacerto. A literatura se alimenta dessa tensão, a sociologia mergulha nela, e a política só é verdadeira quando não fecha as portas do diálogo. Uma formação democrática só se realiza quando aprende a conviver com a incompletude — a própria e a dos outros.
Compreender o outro não é isentá-lo, mas reconhecê-lo. É aceitar que há beleza até na hesitação, sentido até na confusão, valor até no erro. Uma democracia humanista se constrói com esse olhar generoso, atento, capaz de ver para além das palavras. Um olhar que não reduz o outro ao que ele pensa, mas o acolhe como quem reconhece um semelhante no meio da travessia. É esse gesto que sustenta a vida comum, que permite a convivência entre diferenças, que mantém viva a chama da criação. Porque, no fim, tudo o que importa é isso: seguirmos humanos, mesmo quando nos desencontramos.
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[Cabo Frio/RJ, 13 de abril de 2025].
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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