Olga Guarch - The thinker (inspirado na obra de Auguste Rodin)
Junho de 2025. O mundo arde em múltiplas frentes. Guerras proliferam como sombras de um passado que nunca se foi, e o Brasil se curva ao peso de sua própria reincidência: o ódio ocupa o centro do debate público, a polarização devora a escuta, a ineficiência se entranha nas estruturas do Estado e o Congresso Nacional, majoritariamente oposicionista, converte-se em palco de sabotagem meticulosa. O horizonte é tenso e crepuscular. É nesse cenário que se acende novamente a urgência do papel do intelectual público. Não como aquele que detém respostas, mas como quem preserva perguntas, vigia os significados e se recusa ao silêncio.
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O intelectual, no tempo presente, precisa reaprender a sua função. Não é mais a autoridade solene que fala de cima de sua torre, nem o retórico vaidoso que busca apenas a aprovação dos pares. É antes aquele que se recusa a aceitar o mundo como está. Que carrega em si o incômodo da injustiça como um ruído permanente. Que vê na linguagem um campo de disputa e não um instrumento neutro. A guerra lá fora e a decomposição interna exigem uma vigilância profunda sobre o real. É disso que se trata. Não de iluminar os outros com um saber superior, mas de lançar pequenas fagulhas nas trevas compactas da resignação.
Há algo de profundamente ético no gesto de quem insiste em imaginar o que poderia ser diferente. Essa é a centelha mínima que define o intelectual autêntico: não o especialista do diagnóstico frio, mas aquele que carrega consigo um “senso do que está errado e que poderia ter sido diferente”, como nos lembra Jürgen Habermas, com a precisão que só os lúcidos mantêm mesmo diante do abismo. É dele a afirmação: “A única capacidade que ainda deve distinguir o intelectual hoje é o talento vanguardista para aquilo que importa. Isso requer virtudes que são tudo menos heroicas: o senso do que está errado e que ‘poderia ter sido diferente’; uma pitada de fantasia para projetar alternativas; um pouco de coragem para a afirmação provocativa, para o panfleto. Tudo isso é mais fácil dizer do que fazer, e sempre foi” (HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989).
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A guerra não está apenas nas trincheiras e nas fronteiras. Está também nos conceitos, nos afetos, nas narrativas. Está no adormecimento da consciência, na transformação da mentira em método e da brutalidade em norma. E no Brasil, essa guerra simbólica se torna ainda mais letal porque atravessa a própria linguagem democrática. O Congresso, em sua maioria oposicionista, age como se a institucionalidade devesse servir a interesses privados, a pactos secretos e a um rancor programado contra tudo o que cheira a justiça social. O Executivo, por sua vez, responde com hesitação, cercado de conselheiros que confundem conciliação com capitulação. Resta ao intelectual público preservar a vigilância.
Mas que vigilância é essa? Não é apenas a denúncia. Nem tampouco a pretensão de neutralidade. É uma vigilância estética, moral e política. É recusar a linguagem do ódio sem cair no cinismo do tecnocratismo. É não aceitar o empobrecimento da imaginação política, mesmo quando tudo convida à desistência. O intelectual, no Brasil e no mundo, precisa habitar a encruzilhada. Ser ponte onde todos querem muros. Ser ferida aberta onde todos querem anestesia. E essa escolha não é confortável. Exige coragem. Exige o risco do panfleto, como diz Habermas. O risco da palavra que se arrisca na praça. Que se deixa contestar. Que sangra.
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Vivemos um tempo em que tudo parece pedir a renúncia ao pensamento. A guerra na Ucrânia se intensifica, agora com o risco iminente de envolvimento direto da OTAN, transformando o conflito em uma contaminação geopolítica de proporções europeias. O Oriente Médio é devastado pelo brutal massacre da população civil na Faixa de Gaza, transformada em ruína e luto sob os olhos paralisados da comunidade internacional. A guerra que se inicia contra o Irã, com bombardeios coordenados e ameaças abertas de escalada nuclear, pode empurrar o planeta para um ciclo sem retorno. O mundo caminha à beira de uma guerra ampliada, com focos simultâneos e riscos reais de colapso das barreiras diplomáticas. A lógica da destruição total, tão temida durante a Guerra Fria, volta a assombrar os corredores do poder em Washington, Teerã, Moscou, Tel Aviv, Kiev e Bruxelas. A humanidade, que parecia ter aprendido algo com o horror do século XX, volta a brincar com o fósforo sobre a palha seca do século XXI.
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No Brasil, a polarização não é apenas ideológica. É afetiva. Existencial. É como se o país tivesse perdido o sentido comum. A realidade se esfarela em bolhas, em silêncios, em farsas. O intelectual precisa, portanto, insistir no comum. Mesmo quando o comum pareça inalcançável. Mesmo quando o diálogo pareça inútil. Há uma aposta, uma fé secular no gesto de falar com e não apenas sobre.
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É preciso ainda uma pitada de fantasia, como também lembra Habermas. Não se trata de evasão, mas de imaginação política. De projetar alternativas mesmo quando o chão parece firme demais para permitir qualquer desvio. É imaginar que o Brasil pode ser mais do que o eterno retorno de seus fantasmas. Que a política pode ser um campo de cuidados e não de extermínio simbólico. Que a linguagem pode ser reparada. Que o tempo pode ser reconstruído. Que a história não terminou.
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A beleza dessa tarefa é também sua dor. Porque o intelectual não tem garantias. É um trabalhador da incerteza. Alguém que se move entre a crítica e a esperança. Que se recusa a escolher entre o pessimismo paralisante e o otimismo ingênuo. Que carrega, como dizia Antonio Candido, a responsabilidade de “não permitir que a injustiça se torne natural”.
Não há tempo para covardia. A conjuntura brasileira de junho de 2025 não é um pesadelo passageiro. É a expressão de forças reais, articuladas, que desejam enterrar a democracia sob os escombros do ressentimento. E no mundo, o futuro imediato parece feito de cinzas. Por isso mesmo, o intelectual público precisa reaparecer. Não como salvador, mas como sinal. Como presença incômoda. Como farol de um outro tempo.
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A história ainda não acabou. Ainda há palavras a serem ditas. Ainda há pontes a serem lançadas sobre os abismos. Ainda há uma tarefa no pensamento. É ela que deve nos mover. Com ternura, com coragem, com vigilância.
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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