LITERATURA

Ventania – Carlos Drummond de Andrade

As casas são navios que, enquanto mergulhamos no sono, levantam âncora para a travessia da noite. A imagem é de uma novela de André Gide, mas qualquer um pode recriá-la na solidão do quarto. Mesmo antes de cerrarmos os olhos, a casa navega. Sentimos a flutuação silenciosa, e nos deixamos ir ao embalo desse deslocamento surdo, sobre águas oleosas e invisíveis. No dia seguinte, a vida está no mesmo lugar.
Tudo iria bem, não fosse esse sopro que faz estremecer levemente um galho de árvore e deposita uma primeira folha sobre o nosso rosto horizontal. Vem com ela um cheiro (ou sabor) acre de poeira, pois nessa fase da desintegração da consciência, paladar e olfato já se emaranharam numa percepção confusa, e não sabemos classificar a sensação. De qualquer modo, não é uma brisa tímida, que se detém um instante e se anula; é o vento organizado, que pretende conduzir também as árvores para o cruzeiro noturno, quando é sabido que árvores devem permanecer em vigília. Os troncos recusam, e ele, de mau, os desfolha, e pela janela aberta um pouco de árvore e de luta vem depositar-se na cama.
O corpo a corpo com as amendoeiras se ativa, e temos de fechar a janela, para que o tropel do combate não se instale em nosso peito. Agora a escuridão nos defende, mas pela frincha das venezianas começa a filtrar-se um rumor diverso, o vento é ao mesmo tempo irado e triste, silva mais agudo, e na madeira e no ar se esboçam ranhuras de pânico.
Não adiantou a providência, pois nesse momento, lá fora, são portas e janelas que estalam em várias direções. Também as casas foram atacadas, casas desprevenidas ou indefesas, que ainda não acabaram de ser construídas, e navegam sem equipagem. Os edifícios em formação tornam-se laboratório de ecos e fábrica de gritos, com esquadrias em alvoroço. Há uma porta bêbada, no centro da noite, batendo mais espetacularmente contra o marco, empenhada em abafar, sozinha, a bulha do vento, mas os pelotões agressores investem numa salva de injúrias e arrancam-na das dobradiças, num último estrondo.
E é o saque. A lingerie dos terraços vem para a rua, entre vasos e ramos de trepadeira, com outros objetos disparatados que foi possível subtrair aos interiores mal protegidos. Coisas cirandam no espaço, chocam-se contra postes, e, como o vento sabe furtar mas não sabe recolher, acabam dispersas no chão, despojos largados pelo vencido como pelo vencedor.
É a natureza roendo os bens do homem, divertindo-se em assustá-lo no escuro, convocando velhos medos, modelando fantasmas novos. Deitamo-nos tão seguros de nossa estabilidade em um mundo a que presidiam a lei e a técnica, nutríamos tamanha confiança nos materiais de construção e na ordem dos elementos, e bastou que certa massa de ar se deslocasse de maneira abrupta para que nossa calma, nossa segurança e mesmo nossa vida se vissem ameaçadas por um obscuro e implacável inimigo, a que nos submetemos. Porque não há outra coisa a fazer senão esperar que o furacão amaine sua cólera, depois de derrubar, aqui, a igreja evangélica Assembleia de Deus; mais adiante, a lona do circo Apolo, ferindo a uns, matando a outros, assustando todos. Perdemos o sono e o sentimento da nossa orgulhosa integração na cidade, pois toda a cidade curva a espinha sob essa visita errante, que brinca de assombração, de desabamento e de morte, e não podemos pensar em serviços públicos de proteção, já não somos donos da terra, mas apenas seres acuados no fundo do quarto de dormir, sem possibilidade de evasão. E há no vento, mais do que a ameaça que talvez não se cumpra, uma zombaria ruidosa, ávida por desmoralizar-nos.
Mas a risada e o furor se fatigam, e, aos poucos, o vento se contrai e retira-se. A grande frota silenciosa das casas retoma sua navegação, entre os restos de noite, e o sono volta a estender sobre nós, piedosamente, o seu feltro.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Saiba mais sobre Drummond:
Carlos Drummond de Andrade – antologia poética
Carlos Drummond de Andrade – entrevista inédita: erotismo – poesia e psicanálise
Carlos Drummond de Andrade – fortuna crítica
Carlos Drummond de Andrade – o avesso das coisas (aforismos)
Carlos Drummond de Andrade – poesia erótica
Carlos Drummond de Andrade – um poeta de alma e ofício

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Luedji Luna lança álbum ‘Antes Que A Terra Acabe’

Luedji Luna emerge de águas profundas para percorrer os caminhos telúricos do amor em “Antes Que A…

11 horas ago

55º Festival de Inverno de Campos do Jordão terá 76 apresentações gratuitas

Criado em 1970 e reconhecido como o maior e mais tradicional evento de música clássica…

2 dias ago

Santo Antônio, amor em tempo de guerra – por Paulo Baía

Num 13 de junho que amanhece com o planeta tremendo, com líderes do mundo se…

2 dias ago

Congadar e Teresa Cristina lançam versão da banda Os Tincoãs

O clássico “Promessa ao Gantois” (Grinaldo Salustiano dos Santos e Mateus Aleluia Lima), da banda…

2 dias ago

Nina Wirtti e Guto Wirtti lançam releitura contemporânea da canção ‘Meu Primeiro Amor’

Neste novo lançamento digital, a cantora e compositora Nina Wirtti (que prepara álbum especial ainda…

2 dias ago

Osesp traz espetáculo multimídia ‘The silence of sound’ à Sala São Paulo

A Fundação Osesp e o Governo do Estado de São Paulo , por meio da Secretaria da Cultura, Economia e…

2 dias ago