Naquela noite, o Papa atravessou sua recorrente insônia com a ajuda de algumas páginas do tratado ilustrado de Mary D’Imperio sobre o manuscrito Voynich, na edição de luxo de 1994. Leu até que os nomes de John Dee e Roger Bacon pareceram misturar-se, e seus olhos começaram a arder. Usando os óculos dobrados para marcar a página, colocou o livro sobre a mesa de cabeceira, e apertou o botão que mergulhou o quarto nas trevas. Fez suas orações deitado, uma auto-indulgência da qual teria se envergonhado aos sessenta anos, mas que agora já lhe parecia um direito adquirido. Também lhe sucedia às vezes adormecer antes de concluir as preces; isso também não o inquietava mais. Pensava: “Deus enxerga meu coração; ele sabe que meu pecado não é este, que minhas dívidas são outras.”

De repente, estava sentado no alto de uma montanha. Todo o horizonte estendia-se à sua frente; o vento era frio, mas não incomodava.

“Este foi o teu último dia sobre a Terra”, disse uma voz ao seu lado. “Tens agora o direito de fazer um último pedido.”

Ao seu lado havia uma forma que a princípio ele tomou por um homem de pé, depois por uma árvore, depois por uma nuvem vertical. Seus traços podiam corresponder a qualquer uma das coisas, e ele imaginou que aquilo era Deus.

“Obrigado, Senhor”, disse. “Não mereço esta graça.”

“Todos os homens a recebem”, disse a voz. “Não és melhor do que ninguém.”

Sem saber o que responder, ele inclinou-se mais uma vez. Pensou: “É meu último dia de vida, mas isso não deve me amedrontar; é como quando após uma refeição alguém retira de minha frente o prato vazio. Por que me rebelar, se já fruí o que me interessava?”

“Olha para tua mão”, disse a voz. “O que mais desejas?”

Ele fitou a palma da própria mão: viu, quem sabe pela última vez, as linhas e as comissuras da pele, viu as rugosidades, o intrincamento têxtil das camadas superpostas, viu o fervilhar da matéria viva, e as células que se partiam e se fundiam umas às outras como gotas dágua.

“Nascer de novo”, respondeu, sem pensar.

“Queres voltar ao passado?”

“Quero nascer de novo, mas no futuro”, retrucou. “Quero nascer sob a forma de outra pessoa, e saber se serei novamente seminarista, e padre, e cardeal, e Papa. Quero que algumas destas minhas células sejam transplantadas para um tubo de ensaio, e dali talvez para um ventre, de onde eu renasça: corpo, rosto e mente iguais aos que tive quando nasci. Código genético igual ao meu, sem a interferência abastardante dos genes de uma fêmea, de uma parideira intrusa. Quero que meu espírito se faça carne, mas quero ser o Pai único de meu Filho.”

“Para quê?”

Ele ergueu-se, e maravilhou-se de ver que mesmo diante de Deus podia ficar de pé quando bem entendesse (“Mas, ai”, pensou, “É o último dia.”). Olhou o vale que se espalhava, olhou mais além. À luz roxa que vinha do céu, distinguiu florestas, mares, arquipélagos, cidades, desertos de areia intacta, enormes cordilheiras de gelo rodopiando devagar em águas de um azul metálico. Cruzou os braços e virou-se para o vulto.

“Se minha alma existe, está ligada sem remissão a este corpo mortal. Se meu corpo se repetir, minha alma permanecerá aqui na Terra. De novo nascerei, e serei um menino que irá dançar ao som de pandeiros e rabecas; de novo roubarei frutas, correrei atrás de cães, beijarei a boca de alguma moça de tranças louras. De novo estudarei o latim e a álgebra, de novo andarei anônimo e de batina por entre homens arrogantes que não suspeitarão o meu futuro. Farei voto de pobreza, e viverei depois como um monarca; farei voto de obediência, e subirei degrau após degrau das hierarquias de comando; farei voto de castidade… e quem sabe na próxima vez tenha mais sorte.”

Lá embaixo no vale, a luz crescia, e ele já enxergava centenas de metrópoles, e cada janela de cada casa, e cada rosto adormecido por trás de cada janela.

“Ninguém teve essa segunda chance”, disse a voz, mas sem tentar persuadi-lo.

“O que pedem os homens, então?”

“Pedem dinheiro, poder, mulheres. Pedem oxímoros, paradoxos: juventude eterna, imortalidade do corpo… Tu pedes que teu corpo se multiplique. E se em vez de um, fizerem dois? De quantas almas irás precisar? E se fizerem vinte, duzentos?”

Ele voltou a sentar-se. Sabia que quem acabara de fazer aquele pedido não era o ancião calejado pelos debates escolásticos, o erudito capaz de enfrentar a Teologia e a Metafísica em doze idiomas, e sim o rapaz que numa noite de febre sentira pela primeira vez, no pulsar dos próprios gânglios, a semente da morte crescendo dentro de si.

“Vai, pede”, disse a voz; e, sem surpresa, ele soube naquele instante que aquela voz não era Deus. Estendeu a mão para o vulto, e tocou nele.

O camareiro, que se chamava Gesualdo, encontrou-o pela manhã; apalpou a pele fria do seu rosto, viu os olhos azuis virados para o teto. Gritou por socorro, e teve a precaução de não tocar em nada no quarto.

– Braulio Tavares, publicado originalmente em Folha de São Paulo, em 1997.

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