domingo, novembro 10, 2024

Um copo de lágrimas – Lya Luft

Minha mulher reclama outra vez que dormi mal, muito agitado, e gritei no sono.
— Você chamou sua mãe — ela diz, ainda passando a mão de leve no meu cabelo para me tranquilizar. — Parece criança. Sempre o mesmo pesadelo?

— Sempre o mesmo. Dorme outra vez — respondo. — Dorme, está tudo bem.

No pesadelo preciso salvar minha mãe e não a consigo alcançar. Ela corre à minha frente no meio da bruma. No meu desespero, só enxergo seu cabelo ruivo como uma echarpe vermelha ao vento. Sou responsável por ela mas sou pequeno demais, meus passos são curtos, ela precisa de mim e ao mesmo tempo escapa. Antes de voltar a dormir lembro quando eu era criança e ela me entregou a escova pedindo que a penteasse. O cabelo ruivo, liso e lustroso, soltava pequenos estalidos, e minha mãe riu, dizendo “estou toda elétrica hoje, viu?”. Aquele instante de felicidade não se repetiria nos nossos anos sombrios. Reaparece, aqui e ali, em algum de meus sonhos que acabam em pesadelo.

Minha mulher acha que devo procurar ajuda. Quem sabe um bom psicólogo. Porque também me acha nervoso demais, e inseguro, não acredito em mim mesmo, e, principalmente, não acredito muito no amor dela. “Que dificuldade você tem para ser feliz”, ela reclama. Diz que pareço ter nascido órfão. Que preciso superar, tudo aconteceu há tanto tempo.

Mas ela não sabe como era aquele tempo. A gente não fala muito no assunto, nem eu nem meu irmão mais moço. Ninguém sabe muita coisa da nossa infância registrada em raras fotos perdidas nas gavetas, ninguém sabe do copo escondido e da ferida exposta. Nem de minha mãe, a quem meu pai protegia de todos os modos, ajudando a disfarçar quando ela tentava ocultar o copo no vestido, na gaveta, atrás de algum objeto, no quarto, na cozinha, em qualquer lugar da casa. E quando não o conseguia, nos dias ruins podia gritar, jogar o copo nele ou dar um tapa rápido e certeiro em nós, que éramos pequenos. Nos dias bons sorria encabulada, mostrava o copo com aquele sorriso meio infantil, é água, eu estava quase esquecendo de tomar o meu remédio.

Não era água: era a sua perdição e a nossa desgraça. Podiam ter sido todas as lágrimas que chorei quando menino: de medo, de vergonha, de raiva, e de culpa por sentir raiva. De frustrado amor por aquela mãe dominada por algo que eu não entendia, que ninguém explicava, que a roubava de nós. Que a tornava feia, desgrenhada, quase sempre no quarto, cada vez mais horas de robe e chinelos, espalhando um cheiro forte que nada tinha de perfume, que superava todos os seus perfumes. Uma figura instável numa casa instável, sem se dar conta da vida, dos filhos, do marido, de si mesma.

— O que a mamãe tem naquele copo que fica querendo esconder? — indaguei da empregada, que respondeu secamente:

— Água, menino, água. Ela tem uma sede danada. Vai brincar com seu irmão, vai, seja um bom menino, seu pai precisa que você seja um bom menino.

Eu era um bom menino, mas não adiantava. Sempre procurei não dar trabalho, não incomodar. Cuidar de meu irmãozinho. Não causar problema, não entristecer o pai nem irritar a mãe. A empregada lidava conosco nos intervalos de seus trabalhos, e meu pai, sem muito jeito, tentava compensar a falta de estabilidade e carinho.

Certa noite, quando eu tinha uns seis anos e meu irmão era um bebê de colo sentado em seu berço ao lado da minha cama, minha mãe entrou em nosso quarto, bela e composta. Iam a alguma festa. Eu tinha insistido com meu pai para que viessem nos dar boa-noite antes de sair. Tinha essa urgência de vê-la o tempo todo, de conferir se ela estava bem, se estava zangada ou tranquila. Usava um vestido comprido, cabelo preso no alto da cabeça. Parece uma rainha, pensei. Meu pai vinha logo atrás, sempre ao seu encalço, sempre atento. Dessa vez vinha com ela só perfume, não o outro odor que em geral a acompanhava, e eu ainda não sabia identificar. Naquele instante eu fui feliz. Ela me fitou com seus olhos quase dourados, mas estava distante. Maquilou-se, quem sabe um pouco demais. Inclinou-se para que eu a beijasse. Logo se impacientou:

— Não precisa me lamber. Você já está grandinho. E amanhã não faça barulho, quero dormir até mais tarde.

Sem mais olhar para nós, saiu, aquele passo de quem tateia o chão para se assegurar de que não haverá tropeços. Meu pai me abraçou rápido, disse “aí, garoto, fica firme”, beijou a cabecinha do bebê e se foi apressado atrás dela. Fiquei ali aspirando o perfume dela, querendo fixar aquele instante que nunca esqueci. Talvez tenha sido a primeira vez que conscientemente me permiti sentir um pouco de raiva por aquela mãe.

Eu era um menino nervoso, e meu irmão, uma criança enfermiça. Nos nossos poucos retratos, temos o ar perplexo de todos os órfãos, embora ela ainda estivesse conosco. Um ar de indagação talvez injusta: como é que ela nos abandona assim, como? Eu, magro, desajeitado e meio dentuço; meu irmão, um menininho que quase não ria. Tirávamos poucas fotografias. Só famílias alegres querem ficar registradas. Nós, não tínhamos motivo.

Não levávamos a vida normal dos outros meninos, em cujas casas eu era chamado para almoçar ou brincar. Eu nunca convidava amigos para nossa casa, pois minha mãe às vezes dizia coisas sem sentido, dava grandes risadas, voz rouca, fala arrastada. Aparecia de robe meio aberto, arrastando os chinelos. Eu não queria que ninguém a visse assim, mesmo sem o copo, aquele copo das minhas mil lágrimas derramadas em todos aqueles anos.

Eventualmente ela me exigia pequenos serviços como achar seu livro, os óculos, um lenço, ficar perto, sair de perto, dizer alguma coisa, não dizer nada. “Você está falando baixo demais, não te escuto. Você está falando alto, que coisa grosseira. Você cheira mal, não tomou banho hoje? Sai daqui, menino, sai daqui, me deixa em paz.” Outros dias agarrava-se a nós, meus filhinhos, meus lindos filhinhos, mas a gente queria fugir daquela língua enrolada e das repetições bobas, dos castigos injustos e daquele cheiro.

— Tudo vai melhorar — meu pai disse quando um dia fui desabafar com ele. Só me despenteou um pouco, num gesto sem graça, e tentou sorrir. Ela tinha me dado uma bofetada em pleno almoço, porque perguntei “mãe, por que às vezes a senhora fala assim esquisito?” Há muito tempo eu notava e queria saber. Falei também com um pouco de maldade, porque queria ter uma mãe normal, e estava começando a sentir ódio dela algumas vezes. Sua língua parecia mole e grossa, mas a mão foi rápida e dura. Os dedos dela ficariam marcados na minha cara. Para sorte minha era fim de semana e não precisei aparecer assim no colégio.

Nada melhorou, e meu pai não pôde evitar. Bem que ele tentava nos compensar pegando meu irmãozinho no colo, conferindo meus deveres de escola, nos levando para o parque onde nos ensinava nome de insetos, de plantas, e jogava bola com a gente. Mas eu sei que seu pensamento estava com ela. Doía em mim que meu pai fosse um fraco, mais fraco do que ela. Não pôde nos dar o que a gente mais queria: uma mãe como as outras, uma mãe comum, brigando porque meu irmãozinho não queria comer ou porque eu tirava notas ruins, me elogiando ou dizendo “essas calças estão curtas, você cresceu neste verão”. Mãe interessada pela saúde do filhinho menor, que o levasse ao médico, que fizesse bolo no meu aniversário, que aparecesse na escola no Dia das Mães, que fosse um pouco feliz. A gente tinha só aquela da qual era melhor ficar longe, sofrendo numa confusão de amor e raiva: por que as coisas tinham de ser assim? Mas, com o desespero de uma orfandade, eu também adorava essa mãe. Para não sofrer, quando pequeno imaginava que ela era uma rainha de um país distante, que só condescendera em ter filhos com a condição de que não lhe exigissem demais, não a incomodassem querendo uma vida normal.

Tudo desmoronou quando entendi que não havia água no seu copo. Foi depois de uma cena terrível à mesa, não sei mais por que razão: minha mãe não precisava de razões. Estava muito zangada, embora pouco antes tivesse estado doce e um pouco chorosa: com ela, tudo era imprevisível. Meu pai levantou-se muito sério para a levar para o quarto. Por um momento achei que ele ia começar a chorar. Meu irmãozinho batia no prato com a colher.

Em geral as crises piores se resumiam ao quarto de casal, e ao banheiro, de onde se ouviam gritos, e barulho de objetos quebrados. Dessa vez ela se recusou a sair da mesa, gritava, esta é a minha casa, eu sou a dona desta casa!, rosto alterado e feio; disse uma série de palavrões, quis bater em meu pai, e na empregada que veio ajudar.

Finalmente a levaram, aos gritos e tropeções. Fugi para o quarto quase arrastando meu irmãozinho que chorava, daquela vez levei muito tempo para o acalmar. Mais tarde esgueirei-me até o quarto dela; queria ver se estava bem. Podia ser louca, podia ser doente, podia até ser malvada, mas era minha mãe. E eu de alguma forma me sentia responsável. Bati; ninguém respondeu; entrei, joelhos tremendo.

Provavelmente naquele tempo meu pai já não dormia ali: não havia sinal dele. Aspirei fundo algo inquietante e estranho, desagradável, que não identifiquei logo. Minha mãe, de bruços na cama, robe entreaberto, roncava alto. Cheguei perto, vi as manchas na colcha, na roupa: o cheiro acre era do seu vômito, misturado ao cheiro de sempre, o cheiro da bebida que, mal disfarçado pelos perfumes, a acompanhava. Eu ia sair correndo quando a empregada entrou com balde e panos, e começou a limpar tudo, falando alto e com raiva:
— Bêbada de novo, essa sua mãe. Coitado do patrão. E coitadinho de você e seu irmão, coitadinhos de vocês todos.

Então num relance compreendi muita coisa, e passei a buscar explicações para outras que nunca cheguei a entender. Talvez não haja explicações. Ela só pensa em beber?, eu me perguntava com raiva crescente. E nós, não valemos nada? Mais tarde eu saberia que ela estava muito doente, mas a dor de todos aqueles anos não diminuiu. Já entrando na adolescência, quando tudo piorou ainda mais, depois de uma cena dolorosa gritei para meu pai:

— Eu só queria que finalmente a gente tivesse uma vida normal!

E ele respondeu com a amargura que nos últimos tempos o marcava:

— O que é normal, meu filho? Me diga, me diga!

Seu olhar era tão triste que nunca mais me queixei. Porém continuei obcecadamente desejando que ela se curasse. Que saísse do quarto e se vestisse direito, que nos olhasse com um pouco mais de alegria, que para ela fôssemos mais importantes do que seu vício. Às vezes ela se ausentava de casa. Meu pai dizia, está num spa, precisa descansar. Eu ficava aliviado porque haveria paz na casa, e aflito por saber que ela estava tentando, mas nada mudaria. Mais de uma vez, contrariando os médicos, ele a tirou de lá antes do tempo: ficava com pena, ou ela tinha sobre ele um poder maior do que qualquer sensatez. Um dia voltou parecendo incrivelmente frágil, e havia algum tipo de regime que precisava seguir, nada de bebida, nem uma gota, escutei meu pai falar na cozinha. Nem no molho da carne pode ter uma gota de vinho. Mas naquela mesma noite, antes do jantar, os dois brindaram com champanha, na cumplicidade funesta que os destruiu. Nada foi mais poderoso na vida dela do que aquela sede fatal. Nem beleza e juventude, nem amor, nem filhos precisados dela, nem todo o frenético cuidado de meu pai, que piorava tudo por ser tão condescendente. Muitas vezes desejei que tudo acabasse, que a gente pudesse ter outra vida, que, se ela não ficasse boa, então fosse embora.

E ela foi. Na noite em que minha mãe foi embora definitivamente, acordei com correria, vozes, exclamações, alguém chorava alto, repetindo:

— Meu Deus, meu Deus! — Era meu pai numa voz estranha: — Tira esse menino daqui, tira esse menino daqui!

Levantei e fui pelo corredor até o quarto dela, de onde vinha aquele alvoroço. A empregada saiu de lá correndo com meu irmão nos braços, nem me olhou. Pela porta aberta vi minha mãe deitada na cama, imóvel. Logo entendi que não estava dormindo. Meu pai sentado junto dela segurava sua mão e a beijava, chorando alto. Fui chegando perto e ele não me impediu. Acho que nem me notou.

O coração dela tinha parado. Simples assim. Não aguentou mais. Meu pai ainda lia na sala, quando meu irmão, acordando na cama ao lado da minha, saiu sem que eu percebesse, e foi em busca da mãe. Devia ter subido na cama, e numa rara exceção a mãe não se retraiu, não reclamou, não o mandou embora. Quando meu pai entrou no quarto, ele dormia aconchegado na morta, cujo rosto, devastado pela bebida e pela angústia, estava singularmente bonito, como eu quase nem lembrava mais.

Foi assim que minha mãe saiu de nossa vida, para se perpetuar como um conflito insolúvel em todos nós. E não fez isso da maneira mais comum, por um acidente, uma doença. Não caiu da escada, não bateu o carro dirigindo embriagada, não deu um tiro no peito, não bebeu veneno. Morreu porque seu coração falhou. Sem ânimo ou razão para ficar conosco, morreu dormindo, e ninguém sabia que estava tão doente. Nem quando adultos comentamos o detalhe trágico do menino adormecido junto do cadáver da mãe. Nem nós nem meu pai, que cedo ficou velho e alquebrado, e nunca mais se casou. Nunca nos interrogamos sobre aquele impulso de nossa mãe, mais forte do que a vida. Não tínhamos palavras nem coragem. Não havia frase que a contivesse, texto que explicasse o seu mal. Prisioneira num cárcere de que nenhum amor ou cuidado tinham a chave, morreu levando o seu segredo — se havia algum.

Meu irmão e eu crescemos, construímos nossas vidas, cumprimos nossas tarefas, cuidamos de nossas mulheres e filhos. Somos preocupados demais, rígidos demais. Muito responsáveis. E nunca nos libertamos de nossa mãe. Quando nos reunimos como qualquer família, em aniversários e natais, ela está conosco embora a gente não comente isso: na sombra nos olha calada, com aquele ar de quem pede desculpas; de quem pede ajuda; ou com a mão levantada para a bofetada injusta.

Eu acho que falhei com ela; não fui suficientemente bom e atento. Embora sendo tímido e nervoso, quem sabe eu poderia tê-la ajudado a se curar, a gostar de si, a olhar para nós. Fui um bom menino, mas não adiantou. Talvez se eu tivesse sentido menos raiva dela, desejado menos vezes que tudo acabasse, que ela desaparecesse e a gente tivesse paz em casa, ela não tivesse morrido tão cedo. Sei que fiz o que pude, todo mundo fez o que pôde. Mas não foi o bastante.

Deve ser por isso que tenho esse sonho mau: quero em vão salvar minha mãe, que corre à minha frente numa espécie de nevoeiro. Por fim só enxergo a sua cabeleira ruiva, lembrança de um raro momento feliz de um menino penteando sua jovem mãe antes de tudo virar insegurança, mágoa e raiva, e sombra. Mas eu não a alcanço, por mais que me esforce. Quero ajudar e não posso. Ela corre depressa demais, e eu não sou bom o suficiente.

Ou não amo minha mãe o bastante para a salvar.

— Lya Luft, no livro “O silêncio dos amantes”. Rio de Janeiro: Record, 2011.

Saiba mais sobre Lya Luft:

Lya Luft – entrevista
Lya Luft – senhora absoluta de um universo
** Outros textos de Lya Luft. AQUI!


ACOMPANHE NOSSAS REDES

DESTAQUES

 

ARTIGOS RECENTES