O tom de nossa vida

Se houver um tempo de retorno, eu volto. Subirei, empurrando a alma com meu sangue por labirintos e paradoxos – até inundar novamente o coração.

(Terei, quem sabe, o mesmo ardor de antigamente.) (Mulher no palco, quis escrever um livro pequeno e prático sobre a permanente reinvenção de nós mesmos. E Nele eu disse – antes de tudo para mim mesma: não sejamos demasiadamente fúteis nem medrosos, porque a vida tem de ser sorvida não como uma taça que se esvazia, mas que se renova a cada gole bebido.

Enquanto houver lucidez é possível olhar em torno e dentro de nós: um intervalo que seja entre a correria do cotidiano, os compromissos, o shopping, a tevê, o computador, a lanchonete, a droga, o sexo sem afeto, o desafeto, o rancor, a lamúria, a hesitação e a resignação.

Refletir é transgredir a ordem do superficial. Mas se eu estiver agachado num canto tapando a cara não escutarei o rumor do vento nas árvores do mundo – que eu sempre quis tanto entender mesmo por um só dia, quem sabe o último dia. Nem saberei se o prato das inevitáveis perdas pesou mais do que o dos possíveis ganhos.

Somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo. Estamos nele como as árvores da floresta: uma é atingida em plena maturidade e potência, e tomba. Outra nem chega a crescer, e fenece; outra, velhíssima, retorcida e torturada, quase pede para enfim descansar… mas ainda pode ter dignidade e beleza na sua condição.

Nestas páginas falei da passagem do tempo que aparentemente tudo leva e tudo devolve como as marés, mas que só nos afoga na medida em que permitimos. Falei do tempo que faz nascer e brotar, porém é visto como ameaça e sofrimento – o tempo que precisa ser domesticado para não nos aniquilar.

Falei de perdas e ganhos que dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. Anunciei que precisava encontrar aqui o tom para dialogar com o leitor, assim como todos buscamos o tom segundo o qual queremos – ou podemos – existir.

Pode ser um tom que nem é o nosso, mas falso, imitado; um tom desafinado porque superficial, ou harmonioso por brotar da alma, raiz de nosso desejo, o nosso jeito, a nossa inteira possibilidade. Talvez a gente não o encontre nunca. Algumas pessoas não conseguem seguir seu ritmo pois nem escutam nem compreendem, ocupadas em tapar o sol com a peneira. Outras o descobrem e acompanham os seus movimentos: alegre, sereno, apaixonado, solene, trágico, tedioso e de novo alegre.

Não dançam com o espantalho dos preconceitos e ilusões, mas com sua amante – a vida. Escutar o tom positivo é mais fácil aos 40 anos do que aos 20, aos 60, mais ainda. Imagino que aos 80 tenhamos suficiente silêncio e espaço interior para que ele baixe, se instale e cante.

Volto ao início deste livro, como gosto de fazer: O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem. Viver, como talvez morrer, é recriar-se a cada momento. Arte e artifício, exercício e invenção no espelho posto à nossa frente ao nascermos. Algumas visões serão miragens: ilhas de algas flutuantes que nos farão afundar. Outras pendem em galhos altos demais para a nossa tímida esperança. Outras ainda rebrilham, mas a gente não percebe – ou não acredita. A vida não está aí apenas para ser suportada ou vivida, mas elaborada.

Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Não é preciso realizar nada de espetacular. Mas que o mínimo seja o máximo que a gente conseguiu fazer consigo mesmo.

Termino o livro e fecho o computador sabendo que por mais que os escritores escrevam, os músicos componham e cantem, os pintores e escultores joguem com formas, cores e luzes -, por mais que o contexto paralelo da arte expresse o profundo contraditório sentimento humano, embora dance à nossa frente e nos convoque até o último fio de lucidez, o essencial não tem nome nem forma: é descoberta e assombro, glória ou danação de cada um.

— Lya Luft, no livro “Perdas e ganhos”. Rio de Janeiro: Record, 2006

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