domingo, maio 18, 2025

‘Tambores de guerra’, uma crônica de Lya Luft

A pequenos intervalos rasteja sobre o mundo a sombra de uma guerra de dimensões maiores, explicitada nos meios de comunicação.
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Uma guerra apenas “interessante” mal faz cócegas em nossa sensibilidade: estamos calejados pelas fotos e filmes de corpos dilacerados e poças de sangue.
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Pequenas guerras mais ou menos ignoradas estão acontecendo sempre em países, cidades ou casas, aqui e ali. Sem falar desta em nosso próprio país — a guerra do narcotráfico —, alimentada cada vez que alguém acende um inocente cigarro de maconha ou dá uma cheirada de coca numa festinha qualquer. E sua irmã, a perversa guerrilha urbana que é a violência do trânsito e da bandidagem impune.

Mas desta vez é a guerra alardeada, propagandeada, a grande morte mil vezes anunciada. Violência em close-up com todos os recursos à mão para melhor matar e assistir à matança nos quatro cantos da Terra.
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Insisto em que o ser humano não é original. Recoberto de algum requinte, continua feroz. Contemplando a violência dos tempos atuais, penso nos tempos antigos. A Idade Média. As Cruzadas. A Santa Inquisição.

Quando visitei pela primeira vez a catedral de Colônia, inimaginavelmente grande, a primeira coisa que me ocorreu foi como teria sido quando de sua construção. Aquele monstro alteando-se do nada, em torno centenas de choupanas miseráveis onde miseráveis seres humanos morriam na imundície e na lama, construtores ínfimos daquela maravilha máxima. Entrei na catedral com certo enjôo. Pois o humano ainda me comove mais do que a arte.
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Agora a guerra é mais suja, dizem alguns, pois se mata de longe, apertando botões ou lançando veneno. Antes se rasgava o ventre do outro ou se decepava sua cabeça, depois se corria, mãos molhadas de sangue, a estuprar mulheres e crianças na aldeia próxima.
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O que seria mais sujo ou mais higiênico, eu não saberia distinguir.

Os gritos dos torturados pela Santa Inquisição continuam ecoando pelas prisões e praças onde eles sofreram e morreram por razões abjetas como manipulação do pensamento e exercício desvairado do poder.
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Mas o mundo não é só isso. O mesmo animal predador, que mata por lucro e poder, também produz arte, ama, sabe refletir, ensinar, expressar ideias incríveis, acolher o amigo, segurar a mão do amado que morre.

Pode parecer tolo, mas eu acredito que, nos momentos de sombra, mais do que argumentar e gritar ou deprimir-se, a gente devia acender a pequena chama de algo positivo. Se cada um cultivar afeto, beleza e lealdade em seu ambiente, por pequeno que seja, isso há de espalhar claridade no mundo. E não haverá apenas sombra e horror.
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Porque se a gente não acreditar nisso, melhor será correr para o campo de batalha (ou para uma de nossas ruas mesmo) e abrir o peito à primeira bala de quem quer que seja.
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Bala perdida serve — e não é coisa assim tão rara.
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[crônica do livro]
Lya Luft, no livro ‘Pensar é transgredir’. Rio de Janeiro: Record, 2011.
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