quarta-feira, outubro 9, 2024

Severo Sarduy – poemas

Rothko
(A Andrés Sánchez Robayna)

As cores, não, tampouco a forma pura.
Rememorar da tinta. Sedimento
que se decanta, à luz, de seu pigmento,
além, além da tela e sua armadura.
Sombra alguma, nem linhas, nem textura,
nem a quase-ilusão do movimento;
silêncio, nada mais: o sentimento
de já estar em presença: da Pintura,
suas franjas paralelas, cuja bruma
cruza o intacto da tela, colorida
embora de zarcão, vinho que esfuma;
cor púrpura, cinábrio, tez laranja…
O vermelho do sangue que se esbanja
selou sua exploração. Selou sua vida.
.

Rothko
(A Andrés Sánchez Robayna)

No los colores, ni la forma pura.
Memoria de la tinta. Sedimento
que decanta la luz de su pigmento,
más allá de la tela y su armadura.
Las líneas no, ni sombra ni textura,
ni la breve ilusión del movimiento;
nada más que el silencio: el sentimiento
de estar en su presencia. La Pintura
en franjas paralelas cuya bruma
cruza la tela intacta, aunque teñida
de cinabrio, de vino que se esfuma;
púrpura, bermellón, anaranjada…
El rojo de la sangre derramada
selló su exploración. También su vida.
– Severo Sarduy [tradução Haroldo de Campos]. “Três (re)inscrições para Severo Sarduy”. In: CAMPOS, Haroldo de. O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010.

§

Morandi
Uma lâmpada. Um copo. Uma garrafa.
Sem outra utilidade nem premência
que estar aí, que dar à consciência
um suporte casual. Que traço grafa

o gesto que uma acende e os outros usa
para beber? Tudo foi clareado
ou coberto de cal e nada acusa
abandono, descuido nem cuidado.

A luz somente é familiar e reta,
o relevo eficaz; sombra direta
se alonga na toalha. O dia cedo

segue o passo do tempo, lento, a vaga
irrealidade. A tarde já se apaga.
Objetos se abraçam: sentem medo.
.

Morandi
Una lámpara. Un vaso. Una botella.
Sin más utilidad ni pertinencia
que estar ahí, que dar a la consciencia
un soporte casual. Mas no la huella

del hombre que la enciende o que los usa
para beber: todo ha sido blanqueado
o cubierto de cal y nada acusa
abandono, descuido ni cuidado.

Sólo la luz es familiar y escueta
el relieve eficaz; la sombra neta
se alarga en el mantel. El día quedo

sigue el paso del tiempo con su vaga
irrealidad. La tarde ya se apaga.
Los objetos se abrazan: tienen miedo.
– Severo Sarduy [tradução Haroldo de Campos]. “Três (re)inscrições para Severo Sarduy”. In: CAMPOS, Haroldo de. O segundo arco-íris branco. São Paulo: Iluminuras, 2010.

§

revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy sentado en un sillón – fonte: Inst. Cervantes

Como bailarino de teatro nô
Como bailarino de teatro nô
que detém cada gesto
para mostrá-lo na cena quieta
e detém o desenho de gestos
para surpreendê-lo em uma história
quieta sem desenlace
assim a corrente de palavras
começa a circular detida
lentamente habita o teatro
povoa a cena
com letras
coloca-se em seu papel

.
Como el bailarín de teatro no
Como el bailarín de teatro no
que detiene cada gesto
para mostrarlo en la escena quieta
y detiene el debujo de gestos
para suspenderlo en una historia
quieta sin desenlace
así la corriente de palabras
empieza a circular detenida
lentamente habitada el teatro
puebla la escena
con letras
se coloca en su papel
– Severo Sarduy [tradução Claudio Daniel]. em “Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina”. [organização, seleção e notas Claudio Daniel; tradução Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.

§

revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy en París, 1963.

Incrustar cascavéis em tuas faces
com cal escrever em tua fronte
com riscos espirais pintar o teu sexo
as nádegas com discos fluorescentes

linhas de pontos brancos
agrimensor do teu corpo negro

assinar em tua cabeça
cobrir os teus pés de gesso
flores de ouro nas mãos
olhos egípcios no peito

ideogramas brancos
teu corpo, um mapa negro
.

incrustarte cascabeles en las mejillas
con cal escribirte en la frente
con rayas espirales pintarte el sexo
las nalgas con discos fluorescentes

líneas de puntos blancas
agrimensor de tu cuerpo negro

firmarte la cabeza
cubrirte los pies de yeso
flores de oro en las manos
ojos egipcios en el pecho

ideogramas blancos
un mapa negro tu cuerpo

– Severo Sarduy [tradução Claudio Daniel]. em “Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina”. [organização, seleção e notas Claudio Daniel; tradução Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.

§

Chuvas de algodão
Chuvas de algodão
neves de espuma
lágrimas de perfume
têm reservado
seu momento de queda
na memória da contra-regra.
E no texto do ponto
um cemitério clandestino
de palavras alinhadas
em seus iguais (os ecos) as atrizes
confiam refletidas renascer
.

Lluvias de algodón
Lluvias de algodón
nieves de espuma
lágrimas de perfume
tienen reservado
su momento de caída
en la memoria del utilero.
Y en el libreto del apuntador
un comentario clandestino
de palabras alineadas
en sus iguales los ecos las actoras
confian reflejadas renacer
– Severo Sarduy [tradução Claudio Daniel]. em “Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina”. [organização, seleção e notas Claudio Daniel; tradução Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.

§

Morandi
Uma lâmpada. Um copo. Uma garrafa.
Sem outra utilidade ou pertinência
que estar ali, que dar à consciência
um casual pretexto, mas não grafa

o traço humano que ora inflama, abafa
a luz ou que ali beba. Em tudo a ausência:
paredes que, caiadas, dão ciência
que ali ninguém repousa nem se estafa.

Somente é familiar a luz acesa
que põe sobre a toalha posta à mesa
a sombra que se alarga: o dia quedo

do tempo o passo segue em sua vaga
irrealidade. A tarde já se apaga.
Abraçam-se os objetos: sentem medo
.

Morandi
Una lámpara. Un vaso. Una botella.
Sin más utilidad ni pertinencia
que estar ahí, que dar a la consciencia
un soporte casual. Mas no la huella

del hombre que la enciende o que los usa
para beber: todo ha sido blanqueado
o cubierto de cal y nada acusa
abandono, descuido ni cuidado.

Sólo la luz es familiar y escueta
el relieve eficaz: la sombra neta
se alarga en el mantel. El día quedo

sigue el paso del tiempo con su vaga
irrealidad. La tarde ya se apaga.
Los objetos se abrazan: tienen miedo.
– Severo Sarduy [tradução Glauco Mattoso]. em “Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina”. [organização, seleção e notas Claudio Daniel; tradução Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.

§

Orquestra tântrica
Cootie Williams no trumpete-fêmur.
Joe Nanton no trombone: para obter um bom wa-wa
dente de ouro na boca de cobre
Johnny Hodges no sax alto: um grande lama, sim senhor. Que outro
poderia expulsar pela boca
o ar respirado por todo o ano?
Harry Carney no sax barítono, um grande lama, sim senhor. Que outro
poderia expulsar por todo um ano
o ar aspirado pela boca?
Sonny Greer na batera: os tamborins:
crânios de criança serrados pela metade
couro de iaque legítimo.
Duke no piano em chamas.
com o trombone de Benny Morton
e o trumpete de Dizzy Gillespie
apreciado por experts
com suor negro
droga
em um buraco de um barco
dança
em um barco de pás
outra vez fetiche
de tão sofisticada
muito ouro e arabescos duplos
de pedras e plumas incrustada deus
cubo de marfim pontos negros dado
um trumpete oxidado
.

Orquestra tântrica
Cootie Williams a la trompeta-fémur.
Joe Nanton al trombón: para obtener un buen wa-wa
orine en la boca de cobre
Johnny Hodges al sax alto: un gran lama, sí señor. Quién si no
podría expulsar por la boca
el aire aspirado por el ano?
Harry Carney al saxo barítono, un gran lama, sí señor. Quién si no
podría expulsar por el ano
el aire aspirado por la boca?
Sonny Greer al drum: los tamborines:
cráneos de niño serruchados por la mitad
cuero de yack legítimo.
Duke al piano em llamas.
con el trombón de Benny Morton
y la trompeta de Dizzy Gillespie
probado por expertos catadores
com suor negro
droga
en la cala de un barco
danza
en un barco de ruedas
otra vez fetiche
de tan sofisticada
tan de oro e dobles arabescos
de piedras y plumas incrustada dios
cubo de marfil puntos negros dado
una trompeta oxidada
– Severo Sarduy. ‘Big Bang’ (1974).. [tradução Joca Reiners Terron]. in: elson fróes, 13.12.2008.

revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy, Casa de la radio de París, 1971. © Antonio Gálvez

BREVE BIOGRAFIA DE SEVERO SARDUY
Severo Sarduy poeta e romancista, nasceu em Camagüey (Cuba), em 1937, falecendo em 1993, exilado na capital francesa. Publicou os romances: Gestos (1963), De donde son los cantantes (1967), Cobra (1972), Colibrí (1983), e Pajaros de la playa (1993), além de cinco livros de poemas, entre eles (Big Bang (1974). Como ensaísta, é autor de Barroco (1974), La simulación (1982), Un testigo fugaz y disfrazado (1985), entre outros, reunidos no volume Ensayos generales sobre el barroco (1987).
No Brasil, foram publicados os romances Cobra (José Alvaro, 1975), traduzido por Gerardo Mello Mourão, e Pássaros da praia (Siciliano, 1985), traduzido por Wladir Dupont. Da sua produção ensaística, foi publicado Escrito sobre um corpo (Perspectiva, 1979), com tradução de Lígia Chiaprinini M. Leite e Lúcia Teixeira.
Fonte: DANIEL, Claudio (org., sel., e notas). Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina. [tradução Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.

revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy na Índia – fonte: Inst. Cervantes

Obra Severo Sarduy em português
:: Cobra. Severo Sarduy. [tradução Gerardo Mello Mourão]. Rio de Janeiro: José Alvaro Editor, 1975.
:: Escrito sobre um corpo. Severo Sarduy. [tradução de Lígia Chiaprinini M. Leite e Lúcia Teixeira].São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
:: Pássaros da praia. Severo Sarduy. [tradução Wladir Dupont]. São Paulo: Siciliano, 1985.
:: Colibri. Severo Sarduy. [tradução de Sieni de M. Campos]. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
:: Cobra. Severo Sarduy. [tradução tradução de Margarida Amado e Pedro Santa María de Abreu]. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

Antologia (participação)
:: Jardim de camaleões: a poesia neobarroca na América Latina. [organização, seleção e notas Claudio Daniel; tradução de Claudio Daniel, Luiz Roberto Guedes e Glauco Mattoso; prefácio de Haroldo de Campos]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2004.

Bibliografia sobre Severo Sarduy
CAMPOS, Haroldo de.. Três (re)inscrições para Severo Sarduy. São Paulo: Memorial da America Latina, 1995.
MORENO, C. F. (org.) América Latina em sua literatura. [tradução Luiz João Gaio]. São Paulo: Perspectiva, 1979.
ROBAYANA, Andrés Sánchez. Figuraciones del Oriente en la poesía de Severo Sarduy. in: Centri Virtual Cervantes. Disponível no link. (acessado em 13.7.2016).

Amizades literárias

revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Jorge Luis Borges e Severo Sarduy em Paris
revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy e Octavio Paz em 1982 – fonte: Inst. Cervantes
revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Starduy e François Whal – fonte: Inst. Cervantes
revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy e Roland Barthes – fonte: Inst. Cervantes
revistaprosaversoearte.com - Severo Sarduy - poemas
Severo Sarduy e Vasco Szinetar – foto: Vasco Szinetar

Outras fontes
:: Centro Virtual Cervantes – Severo Sarduy
:: Fundação Severo Sarduy
:: Antonio Miranda
:: Antologia Poética do Neobarroco – Elson Fróes
:: Mallarmargens – Severo Sarduy

© Direitos reservados aos herdeiros

© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske


ACOMPANHE NOSSAS REDES

DESTAQUES

 

ARTIGOS RECENTES