sexta-feira, maio 30, 2025

Rubem Alves ‘Caminhos possíveis’

Uma anedota se faz assim: constrói-se uma trama de expectativas que levam o ouvinte a esperar um certo final, mas, de repente, numa rasteira rápida, a narrativa termina com um final totalmente inesperado… mas lógico. Tem de ser lógico. Se não for lógico, não tem graça. E tem de ser inesperado. Se não for inesperado, também não tem graça. Quer destruir o riso? Comece a piada contando o fim… É nesse final inesperado que o riso explode, quando a realidade, por meio de um salto, subverte a expectativa. Por que rimos com o final da anedota? Talvez porque a anedota nos revele algo sobre a própria estrutura da realidade. Rimos por sentir que a realidade é mais rica e divertida que nossas projeções científicas a seu respeito. Aconteceu na minha vida. Se minhas projeções para a minha vida tivessem se cumprido, eu seria hoje, talvez, um engenheiro ou um médico. Sou o que sou porque tudo o que planejei deu errado. Jamais passou pelos meus planos que um dia eu seria um escritor.

A vida me ensinou que a realidade é como uma piada e que não existe nada mais inútil que nossas projeções futurológicas: o final é sempre inesperado… Daí a tolice das profecias.
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Assim, sinto-me andando em areia movediça ao tentar imaginar como será a escola e a educação daqui a vinte e cinco anos. Mas a pergunta me foi feita, e eu tenho de imaginar um final… sem graça. Vou, assim, simplesmente indicar algumas das tendências que percebo no presente e imaginar qual poderia ser o seu desenvolvimento no futuro.
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Em primeiro lugar há as instituições de ensino que se enquadrariam no modelo a que poderíamos dar o nome de “escola tradicional”. As escolas tradicionais têm sido, por séculos, o modelo dominante de escola no mundo ocidental. Eu frequentei uma escola tradicional porque na minha infância e juventude não havia outras, embora não seja certo dizer que foi numa escola tradicional que estudei. Eu estudei muito por minha conta, perseguindo meus próprios interesses.

A escola tradicional se caracteriza por ser baseada em “programas” em que os saberes, organizados numa determinada ordem, são estabelecidos por autoridades burocráticas superiores. Os professores são aqueles que sabem o programa e o ensinam. Os alunos são aqueles que não sabem e aprendem. Os professores são ativos, os alunos são passivos. A grande preocupação burocrática e funcional dos professores é “dar o programa”. Os alunos são agrupados em turmas independentes que não se comunicam umas com as outras, e a atividade de pensar é fragmentada em unidades de tempo chamadas “aulas”, que também não se relacionam umas com as outras. Para que as atividades de aprendizagem se deem de maneira uniforme e possam ser mais facilmente avaliadas, empregam-se “livros-textos”. A aprendizagem é avaliada numericamente por meio de testes e provas nos quais os professores fazem as perguntas e os alunos dão as respostas. Todas as instituições são resistentes às mudanças. As escolas tradicionais, instituições, são extremamente resistentes a mudanças, superando mesmo a instituição do casamento. Muitas das escolas tradicionais são estatais. As instituições estatais, por garantirem um emprego vitalício, retiram do trabalho os desafios que as impulsionariam na direção de mudanças e favorecem o imobilismo. “É a necessidade que faz o sapo pular.” A segurança põe a inteligência a dormir. Por força da lei elas detêm o monopólio do poder de “certificar” o conhecimento. Conhecimento real sem o devido “certificado” da escola tradicional é como se não existisse. O que obriga os pretendentes ao trabalho a se submeterem às suas regras posto que, numa enorme variedade de situações, o que se exige não é conhecimento real, mas o “certificado” oficial de conhecimento. Prevejo que daqui a vinte e cinco anos essas escolas estarão do mesmo jeito, talvez pintadas com cores mais alegres.
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Mas, de repente, os saberes começaram a pulular fora dos limites oficiais do saber definidos pela escola tradicional. Circulam livres no ar, sem depender de turmas, salas, aulas, programas, professores, livros-texto, dotados do poder divino de onipresença: o “aprendiz” aperta um botão e viaja instantaneamente pelo espaço. O “aprendiz” se descobre diante de um mundo imenso onde não há caminhos predeterminados por autoridades exteriores. É o seu desejo que dá as ordens. Viaja ao sabor da sua curiosidade, quer explorar, experimenta a surpresa, o inesperado, a possibilidade de comunicação com outros aprendizes companheiros de viagem. Mas o fato é que ele se encontra diante de uma tela de computador. O que ali aparece não é a realidade onde a vida acontece. É um mundo virtual, de símbolos. Trata-se apenas de um “meio”. E é somente isso, essa alienação da realidade vital, que torna possível a sua imensidão potencialmente infinita. Mas, como disse MacLuhan, “o meio” – fascinante! – “é a mensagem”. E a “massagem”… Há o perigo de que os “fins”, a vida, sejam trocados pelo fascínio dos meios – mais seguros e mais extensos. Não se pode comparar a imensidão dos meios que assim se abre, via internet, com a experiência pequena e localizada onde a vida acontece. Fascinante essa nova escola, não é preciso ser profeta para prever que ela irá se expandir além daquilo que podemos imaginar. Mas é preciso perguntar: qual o sentido desses meios para os milhões de pobres que não têm o que comer? Serão deixados à margem da educação? E a possibilidade de se trocar o “real” pelo “virtual”? Meio ambiente é coisa real, não virtual.

Há, finalmente, um extraordinário florescimento de experimentos educacionais alternativos centralizados no aluno e no mundo real em que ele vive. Por oposição ao conhecimento virtual, essas experiências de aprendizagem se constroem a partir dos problemas vitais com que os alunos se defrontam no seu cotidiano, no seu lugar. Não há programas universais definidos por uma burocracia ausente porque a vida não é programável. E não existe a possibilidade de alienação porque os desafios partem da vida, em toda a sua diversidade e imprevisibilidade. Os problemas das crianças nas praias de Alagoas, nas favelas do Rio, nas matas da Amazônia, nas montanhas de Minas, não são os mesmos. O que esses experimentos educacionais buscam, além dos saberes que porventura venham a ser aprendidos, é o desenvolvimento da capacidade de ver, de maravilhar diante do mundo, de fazer perguntas e de pensar – sem medo de errar… Tenho a esperança de que esses experimentos continuem a pipocar, porque é neles que o meu coração se sente mais feliz e esperançoso.
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[crônica do livro]
Rubem Alves, no livro ‘Educação dos Sentidos e mais‘. Campinas/SP: Verus, 2011

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