Rio de Janeiro
O Rio de Janeiro me chama como quem convoca os que ainda sabem que viver não é apenas cumprir o roteiro previsível dos dias, mas atravessar a existência como quem dança sobre o fio da navalha, entre o prazer e a finitude. Volto à cidade onde a vida nunca se explica, apenas se apresenta — excessiva, desmedida, inquieta, viva. E vou não como quem cumpre tarefas, mas como quem celebra o milagre de ainda estar aqui, inteiro, aos setenta e três anos, com o corpo que carrega o tempo, e com a alma que insiste em ser mais leve do que ele.
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Chego como quem se oferece ao abraço largo da cidade, que nunca é a mesma, nunca é previsível, nunca é morna. Ali me esperam rostos que são extensão do meu próprio caminho: amigos, parentes, minha filha, minha neta — pedaços de mim espalhados no mapa afetivo que o Rio de Janeiro desenhou em minha história. E se vou também ao encontro dos exames, dos diagnósticos e das rotinas médicas, é só para reafirmar que a saúde, quando se cuida, é apenas combustível para mais encontros, mais conversas, mais vida.
O Rio de Janeiro pulsa em frenesi. Está nas esquinas que guardam segredos, nos bares que colecionam histórias, nas livrarias que são refúgios e portais, nos teatros onde a existência se reinventa em cena, nos cinemas onde o mundo cabe em duas horas de luz e sombra. Está na UFRJ, esse território de pensamento inquieto, onde as ideias ainda são matéria viva e onde o futuro se desenha no risco de quem ousa pensar. E eu, que me recuso a ser espectador do tempo, me lanço outra vez nesse tablado caótico e fascinante que é a cidade.
Não é uma viagem de quem foge da rotina — é a celebração de quem sabe que o cotidiano, se bem vivido, nunca se torna enfadonho. Cada café partilhado, cada livro folheado, cada taça erguida em conversa, cada riso entrelaçado nas madrugadas cariocas é um manifesto contra a pasmaceira dos dias que se arrastam. O Rio de Janeiro me devolve a mim mesmo, me reinventa, me obriga a lembrar que existir é um ato urgente, nunca adiado.
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Há uma sabedoria oculta em entender que o tempo não espera, e que é preciso habitar cada segundo com a inteireza de quem sabe que a vida não tem ensaio, nem reprise. Aos setenta e três, já não carrego a ilusão da eternidade, mas também recuso a rendição à melancolia. Caminho pelas ruas como quem coleciona instantes — aqueles que se oferecem no calor dos encontros, na beleza dos afetos, na intensidade dos olhares, na simplicidade das coisas que importam.
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E assim, vou ao Rio de Janeiro como quem retorna ao ventre do mundo. Para existir mais uma vez, para me reconhecer no espelho das minhas próprias escolhas, para brindar a permanência da vida enquanto ela insiste, generosa e desafiadora. O corpo carrega o tempo, sim, mas a alma, essa se nega a envelhecer. E enquanto houver cidade, encontro, afeto e desejo, haverá sempre motivo para partir, para chegar, para celebrar.
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[27 de maio de 2025 em Cabo Frio/RJ].
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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