A vida sempre se apresenta como uma fortaleza de pedra, como muralhas erguidas contra a vertigem do vazio. Tocamos paredes, sentimos o peso dos corpos, o ritmo do tempo nos marca a pele, e acreditamos que tudo isso é sólido, que nada pode dissolver aquilo que chamamos de realidade. Mas basta a dúvida surgir, basta o olhar demorar-se um instante a mais, basta que um silêncio interrompa a sequência costumeira dos gestos, e de repente essa muralha se desfaz como areia, como fumaça diante do vento. O que chamamos de real não passa de uma superfície frágil, sustentada pela ficção que inventamos para sobreviver. É a ficção que dá cor ao mundo, que costura as horas, que protege contra o abismo. A realidade sozinha é silêncio bruto, é o nada sem contorno.
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Nas conversas com Carlos Alberto da Silva Barreto percebi que cada ser humano é portador de uma narrativa sem fim. Somos livros que nunca se fecham, romances que não chegam ao último capítulo, histórias em constante reescrita. Nossa fala não é clara nem transparente, mas cheia de desvios, falhas, lapsos, pausas. No tropeço da língua, no esquecimento repentino, no silêncio que atravessa a frase, o inconsciente se anuncia como autor oculto. Descobrimos que não somos donos de nossa própria história, que o enredo que acreditamos conduzir já estava escrito em nós por forças mais profundas. O que chamamos identidade é uma ficção sustentada por repetições, é um enredo narrado vezes suficientes para que pareça verdade. Por isso, quando Jacques Lacan afirmava que a verdade tem estrutura de ficção, ele não brincava com palavras. Ele apontava para o coração da existência: sem ficção, a verdade não se ergue, não se sustenta, não respira.
Com Gisálio Cerqueira aprendi que o mesmo se dá na política. Muitos acreditam que ela é feita de fatos duros, de leis inabaláveis, de decisões concretas. Mas basta olhar com atenção para ver que a política é palco iluminado. É teatro. Cada discurso é performance, cada campanha é uma peça cuidadosamente ensaiada, cada escândalo é cena planejada ou improvisada diante de uma plateia sempre faminta por emoção. As leis são narrativas que precisam ser acreditadas para ganhar corpo. A política é espetáculo diário. É dramaturgia em movimento, e seus atores, conscientes ou não, desempenham papéis diante de um público que exige coerência. O caos só não se impõe porque acreditamos na ficção política que dá ordem ao mundo. Sem essa narrativa coletiva, não haveria governo, não haveria sociedade, apenas fragmentos desconexos de vozes e desejos.
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A vida em comum é sustentada por pactos invisíveis. Acreditamos que o dinheiro tem valor porque herdamos a ficção de que ele representa algo além do papel ou do metal que o compõe. Aceitamos as instituições porque elas se apresentam como garantias da ordem, como guardiãs contra o colapso. Obedecemos às regras porque desde a infância nos contaram que assim deve ser. Esses pactos são histórias que atravessam gerações, ficções repetidas até se tornarem naturais. Quando se rompem, o real se mostra nu, áspero, impossível de suportar. O caos emerge quando a ficção deixa de sustentar a vida. É nesse momento que compreendemos que sem narrativas, sem imaginação, sem ficções, não há realidade possível.
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Desde os primeiros tempos, os povos inventaram histórias para enfrentar o medo do tempo e da morte. Antes da escrita, havia o fogo em torno do qual as palavras eram ditas, havia os cantos que preservavam a memória, havia os rituais que marcavam o ciclo da vida e da morte. Esses mitos não eram ilusões, eram mapas, eram bússolas, eram abrigo contra o deserto da existência. As religiões, as genealogias, os símbolos, tudo isso são formas de resistir ao acaso cego. O humano não suporta viver sem sentido. Por isso cria narrativas que oferecem proteção contra o nada. Somos feitos de histórias tanto quanto somos feitos de carne e de ossos. A ficção é ar, é alimento, é abrigo. Sem ela, a realidade seria um deserto sem horizonte, apenas poeira e silêncio.
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A verdade, que tanto buscamos, nunca foi estática. Nunca esteve escondida em um lugar secreto, esperando ser encontrada como tesouro. Sempre foi disputa, sempre foi escrita e reescrita, sempre foi atravessada pelo tempo, pela linguagem, pelo poder, pelo desejo. A verdade é movimento, é narrativa que se constrói no ato de ser contada e acreditada. Jacques Lacan compreendeu essa condição e disse com clareza de lâmina: a verdade tem estrutura de ficção. Isso não a diminui. Ao contrário, a engrandece. A verdade não é uma pedra eterna, mas um texto vivo. Não é monumento imutável, mas narrativa em permanente transformação. A verdade só existe enquanto história.
Essa ficção que sustenta a verdade não é erro, não é engano. É necessidade vital. É nos sonhos que nos reconhecemos, é no delírio que nos reconfiguramos, é na palavra dita ao outro que sustentamos a sensação de existir. O que chamamos de realidade precisa da ficção para se tornar habitável. Sem ela, seria apenas o deserto da ausência. É a ficção que abre trilhas, que oferece oásis, que acende estrelas no céu noturno. É ela que transforma o silêncio em música e o vazio em esperança.
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Viver é narrar. Viver é inventar histórias sobre si e sobre o mundo. Cada gesto é um fio, cada palavra é um ponto, cada silêncio é uma dobra. Tecemos todos os dias esse tecido invisível que nos mantém de pé. É nele que resistimos à erosão do tempo, que enfrentamos a proximidade da morte, que suportamos a solidão. Não há vida sem narrativa. Não há sobrevivência sem ficção.
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E assim compreendemos que realidade e ficção não são opostos. Não são inimigas. São irmãs siamesas, inseparáveis. Uma respira no corpo da outra. A realidade é carne, mas a ficção é sangue. A realidade é forma, mas a ficção é sopro. Sem a ficção, a realidade seria cadáver. Sem a realidade, a ficção seria fantasma. Unidas, fazem nascer a experiência humana: esse tecido indissolúvel de sonho e concreto, de delírio e matéria, de silêncio e canção.
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A verdade é sempre ficção, como lembrava Lacan. Mas é uma ficção especial, uma ficção necessária, vital, indispensável. É essa ficção que nos mantém respirando, que nos permite suportar os dias, que nos dá coragem diante do nada. É nesse enredo infinito que a vida encontra sentido. É nesse teatro silencioso que o humano encontra sua permanência. E é por isso que seguimos vivos: porque acreditamos nas histórias que nos contam, e sobretudo nas histórias que contamos a nós mesmos.
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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