Preta toca o céu, por Fabrício Carpinejar
Não consigo chorar. Para chorar, é preciso acreditar antes que aconteceu. As lágrimas vêm sempre atrasadas. Por enquanto, é susto, é assalto, é ceticismo. Preta Gil não está mais entre nós. Despediu-se na noite de domingo (20/7).
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O Brasil está condoído: perdemos quem nos representava, quem tinha preta no nome e coração no destino.
Perdemos quem devolveu a liberdade para a música a partir da irreverência inteligente. Perdemos quem nasceu para combater o preconceito de frente, quem não aceitava levar desaforo para casa, quem não dava as costas para o medo.
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Perdemos quem era filha de Gilberto Gil e nunca se limitou ao berço famoso. Ampliou o sucesso da família e só conferiu orgulho a esse pai gigante — o que dizer a ele, que tem seu segundo filho arrancado precocemente de seu peito?
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Perdemos você tão jovem, com muito ainda por cantar, para esse maldito câncer no intestino, contra o qual você lutou arduamente ao longo desses dois anos, à procura de uma saída.
Perdemos quem revolucionou o mercado fonográfico nas últimas três décadas. Foram tantos hits que seu show nunca acabava. O show continua e você não está mais no palco.
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Perdemos nosso vulcão, nossa intensidade, nossos sinais de fogo, nosso avião do forró, nossa beleza da autenticidade, nosso espelho d’água, nosso batom, nosso decote, nosso xodó, nosso baile, nosso bloco na rua, nosso puro amor, nosso afoxé casado com o funk, nosso desespero da alegria, nossos recomeços, nossas voltas por cima.
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Quem benzia a nossa humanidade falha e valente, quem não permanecia em qualquer relacionamento. Aquela que gritava, que mordia, que pagava, que pedia, que sofria como nós.
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Se aprendemos a nos assumir, é seu mérito.
Perdemos você agora, inesperadamente, e não há como enfeitar essa ausência. Ninguém está preparado para seguir sem seu riso de olhos, sem seu par de pupilas nos despertando para a urgência de viver. Ficamos nos seus primeiros cinquenta, e parecem infinitos.
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Você não nos escandalizou com a nudez do corpo na capa do seu disco de estreia, “Prêt-à-Porter” (2003). Você nos escandalizou todo dia pela sua alma nua.
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Você sempre voou. Hoje vai tocar o céu.
* Fabrício Carpinejar (poeta, cronista e jornalista) / @carpinejar
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