Ator conquistou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cannes, pelo papel em “O Agente Secreto”, de Kleber Mendonça Filho, que ganhou também o prêmio de Melhor Filme, reforçando o momento excepcional do cinema brasileiro fora do País
Por Marcos Pierry / Correio B
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“Não estava com muita vontade de mudar, não. Mas, agora que já mudei, estou achando legal. É legal, melhor que aqui. Não, nem tudo, né? Porque aqui é o lugar que a gente brinca, a gente sempre se diverte, já tem as coisas todas aqui, a gente já sabe tudo. Lá é tudo estranho para a gente. A gente joga bola, a gente brinca de se esconder”.
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O depoimento algo contraditório, vacilante, marca a estreia de Wagner Moura, aos 11 anos de idade, na televisão e no audiovisual. O menino de olhar perdido e penetrante, com dentinhos frontais separados na boca, fala em uma reportagem sobre o impacto de ter precisado, assim como toda a população local, deixar Rodelas, no nordeste baiano, a 540 quilômetros de Salvador, por conta da construção de uma usina hidrelétrica.

Tristonho talvez, mas certamente muito bem articulado em seu testemunho diante da câmera, ele dava início ali, sem saber, a uma trajetória que, com o percurso de ator, a partir de meados dos anos 1990, na então efervescente cena teatral soteropolitana, formou uma espiral que, 37 anos depois, permanece em ascensão. E como. O mais recente e maior reconhecimento, entre os 54 prêmios que o ator já conquistou, chegou no sábado, com a láurea de Melhor Interpretação Masculina (Prix d’Interprétation Masculine) no Festival de Cannes.
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Em sua 78ª edição, Cannes é o maior festival de cinema do mundo e rivaliza com o Oscar no posto de número um em importância, sendo considerado o festival que marca o contraponto autoral e artístico à festa da indústria e do cinema comercial que é a celebração da “academia” norte-americana. Além de melhor ator, “O Agente Secreto” – que conta a história de um professor que, nos anos 1970, muda-se de São Paulo para o Recife e acaba descobrindo que está sendo espionado por vizinhos – ganhou mais três prêmios: o de Melhor Filme, o da crítica e o de principal destaque segundo os exibidores franceses independentes.
Com o seu prêmio, Moura, que foi indicado ao Globo de Ouro, em 2016, pela performance em “Narcos”, deixou para trás astros como Tom Hanks, Pedro Pascal e Benicio del Toro, que já foi agraciado em Cannes por sua atuação em “Che” (2008), e entra para uma galeria de atores soberbos.
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Desde a primeira edição, em 1946, que reconheceu Ray Milland como Melhor Ator, Cannes concedeu a láurea de Melhor Interpretação Masculina para Marlon Brando, Spencer Tracy, Paul Newman, Orson Welles, Anthony Perkins, Jean-Louis Trintignant, Marcello Mastroianni, Jack Nicholson, Fernando Rey, Jack Lemmon, Michel Piccoli, Forest Whitaker, John Turturro, Daniel Auteuil, Sean Penn e Antonio Banderas, entre outros pesos-pesados.
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Ganhar ali muda a vida de qualquer profissional da sétima arte, elevando a sua cotação para um nível inconteste de excelência. Já muito bem cotado, com grande reconhecimento de crítica e público, há mais de duas décadas por trabalhos como “Deus É Brasileiro”, “Carandiru”, “Tropa de Elite” e “Tropa de Elite 2”, “Saneamento Básico”, “Ó Paí, Ó”, “O Homem do Futuro”, “Elysium”, “Praia do Futuro” e “Guerra Civil”, Moura, apesar da comoção generalizada, não deve ter surpreendido os que há tempos estão familiarizados com sua presença em cena.
Quem acompanha a sua carreira desde o início, certamente nunca deve ter esquecido de sua profunda capacidade de entrar em um personagem, provocando choro e riso ou levando de um a outro em um átimo, como no citado “Deus É Brasileiro” (2003), de Carlos Diegues (1940-2025), que ganhou exibição na tevê aberta recentemente por ocasião da morte do diretor, mas, ainda antes, no teatro baiano (“A Casa de Eros”, “Abismo de Rosas”) ou em montagens do eixo Rio-São Paulo (“A Máquina”, “Os Solitários”).
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Em 2008, traduziu, produziu e estrelou o seu “Hamlet”, tour de force e sonho de consumo de qualquer ator, em uma encenação potente, sensível e cheia de garbo dirigida por Aderbal Freire Filho, ganhando o Troféu APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte), que já tinha conquistado antes duas vezes por atuações no cinema (“Deus É Brasileiro”) e na televisão, quando viveu o cafajeste sedutor Olavo Novaes na novela “Paraíso Tropical” (2007), de Gilberto Braga, par romântico da piriguete Bebel, vivida por Camila Pitanga.
“Tropa de Elite 2: O Inimigo Agora É Outro” (2010), quarto maior público do cinema brasileiro, e o longa-metragem “Marighella” (2019), que roteirizou, produziu e dirigiu, sem figurar no elenco, também lhe garantiram mais dois APCAs. É um artista do palco e da câmera que, como poucos, encarna o ofício do ator, algo que aparece a olhos vistos, por exemplo, na série “Narcos” (2015), para a qual engordou 18 quilos e se mudou meses antes para a Colômbia, justamente, para um laboratório de profunda imersão no personagem, o traficante e narcoterrorista Pablo Escobar (1949-1993).
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Mas a precisão, envolvimento e domínio de Moura em seu trabalho de construir tipos que seduzem, apavoram ou provocam comiseração se faz notar de ponta a ponta na carreira solidamente erguida nessas três décadas. Basta lembrar do homem mesmerizado por um desespero existencial, que se auto-imola, no obscuro curta-metragem “Queda” (1999), um de seus primeiros, com direção de Flávio Oliveira e deste que vos escreve. Ou o intrigante cego do longa “Nina” (2004), de Heitor Dhalia.

Ou do recente Manny Carvalho, que interpreta na série “Ladrões de Drogas”. E o cara, além de tudo, tem um humor daqueles fora do set de filmagem, que por algumas vezes levou para o seu ofício de forma impagável, como em “O Destino de Miguel” (2004), curta de André Moraes que faz uma sátira de “Shakespeare Apaixonado” e no qual ele atua “apenas” – apenas bem entre aspas – com uma debochada dublagem.
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Com o reconhecimento de Cannes, escolhido por um júri sob a presidência de Juliette Binoche, Wagner Moura parece chegar ao topo de uma constelação de intérpretes que marca uma divisa na confecção no protagonista brasileiro, tornando-se o expoente maior de uma geração de outros gigantes, a exemplo de Lázaro Ramos, João Miguel e Selton Mello. Com seus mais de 40 filmes no currículo, ele não estava na Croisette para receber seu prêmio no sábado. Vejam o que disse o ator durante uma videoligação com Kleber Mendonça Filho, que criou o personagem de “O Agente Secreto” para o baiano.
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— “Agora são quase 22h aqui em Londres. Eu tive um dia absolutamente louco, porque passei o dia filmando, não fiquei em Cannes porque tinha que filmar. Estou fazendo um filme aqui em Londres. Recebi a notícia dos prêmios que a gente ganhou da forma mais louca possível, no set de filmagem. Ter hoje brasileiros olhando para o cinema brasileiro e dizendo ‘esse filme, esses artistas nos representam’ me dá uma alegria profunda. Viva a cultura brasileira, viva aqueles que acreditam na importância da cultura para o desenvolvimento de qualquer país. Viva o Brasil, viva os brasileiros”. Sobretudo, um ator. E ponto. É o que lhe basta.