Se você é fã de histórias em quadrinhos (HQ), principalmente do Batman, pode ser que não chegue até o final desse breve texto sem querer me chamar de “herege”. Aviso de antemão que a figura sacra do herói da capa preta será completamente engolida pelas minhas experiências e pelo meu imaginário. Aviso do Ministério do Deboismo dado, vamos apertar os cintos, pois nós vamos viajar!

Problematizar o Batman se tornou um hábito na minha vida precisamente em 2006, quando as milícias formadas por policiais no Rio de Janeiro estampavam as manchetes dos jornais. Nesse período, a maior milícia da cidade maravilhosa se auto intitulava ‘Liga da Justiça’ e o seu símbolo era o Batman. Desse dia em diante, nunca mais consegui ler os quadrinhos ou ver os filmes de uma forma que não fosse fazendo analogias com a nossa sociedade.

Na rebarba da Grande Depressão de 1930, mais precisamente em 1939, a revista DC Comics apresentou o herói de Gotham City, uma Nova York pós-Depressão escura, suja, repleta de becos e vielas onde o risco e o crime estão sempre à espreita prontos para eclodir. Órfão de pais assassinados, nutrido pelas trevas e avesso à luz, o Homem-morcego cria sua própria noção de Justiça que o coloca à sombra da lei e na marginalidade. Metade herói e metade bandido, sem superpoderes, o mascarado tem nome e sobrenome: Bruce Wayne, filho do capitalismo selvagem, da fortuna gerada pelos negócios da família apta a pagar pelas suas aventuras bélicas na calada da noite.

A “ausência” do Estado e sua suposta incapacidade de lidar com a criminalidade são os argumentos justificadores da “justiça com as próprias mãos” promovida por Batman que quer salvar (pelo menos em tese) Gotham City. É interessante como o discurso utilitarista anda de mãos dadas como o (re)surgimento constante do punitivismo que não se restringe apenas no mundo dos quadrinhos. Em 2015, em pleno verão carioca, jovens de classe média, a maioria praticantes de um notório estilo de luta, decidiram punir aqueles que consideravam culpados pelos roubos e arrastões nas praias lotadas. O grupo simplesmente fez uma blitz na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, em plena luz do dia, retirou meia dúzia de garotos pobres e negros dos ônibus e os espancaram “em nome da justiça” e da “segurança” da orla da cidade.

Os exemplos de mimetismo da cultura do herói punitivista e nacionalista não se resumem à micro esfera da juventude carioca. O espetacular surto verde e amarelo de combate à corrupção que assola o país também bebe dessa água, assim como a tônica crescente do “bandido bom é bandido morto”, “queria ver uma chacina por semana”, etc.

Batman não está preocupado com a política de Gotham. Batman está preocupado em limpar Gotham, caçar inimigos eleitos e manter a ordem pública. O punitivismo penal se desdobra sob o mesmo viés higienizador: foca-se na eliminação das classes subalternas e dissimulam-se discussões estruturais, como, por exemplo, a falta de investimento num processo cultural e educacional eficiente. Reforça-se a crença na punição, elegem-se heróis e oculta-se que, para a sociedade capitalista, a existência de alguns é desnecessária, além do encarceramento movimentar dinheiro.

Trago o Homem-morcego para representar o pequeno carrasco que habita as instituições punitivas e as almas de seres criados numa sociedade punitivista, adestrados para pensar na lógica da punição.

É preciso reencontrar a sensibilidade perdida e afastar a lógica do cruel que divide o mundo entre heróis e vilões, e que levanta barreiras entre “eu” e o (a) “outro” (a). É preciso quebrar a lógica punitivista e abrir novos caminhos para o mundo, a começar deixando o Batman no mundo dos quadrinhos…

* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.

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