“Não creio que exista no mundo um silêncio mais profundo que o
silêncio da água. Senti-o naquela hora e nunca mais o esqueci”
– José Saramago, em “O silêncio da água”. [ilustração Manuel Estrada]. Infanto-juvenil. Companhia das Letrinhas, 2010.

Na primeira obra poética de José Saramago descobre-se uma poesia de liberdade, de fraternidade e de luta. Uma luta disfarçada, por dentro das palavras. Pelo interior labiríntico de respiração que habitam todos estes poemas, publicados pela primeira vez em 1966. Digamos que eram os «poemas possíveis» da altura, quando a censura espiava a alma dos escritores. E no entanto, as convicções profundas de Saramago já são bem visíveis em poemas como «Criação»: «Deus não existe ainda, nem sei quando / Sequer o esboço, a cor se afirmará / No desenho confuso da passagem / De gerações inúmeras nesta esfera. / Nenhum gesto se perde, nenhum traço, / Que o sentido da vida é este só: / Fazer da Terra um Deus que nos mereça, / E dar ao Universo o Deus que espera.»
– Diário de Notícias, 9 de outubro de 1998 –

 

Eis uma pequena seleção de poemas dessa obra poética

 

ARTE POÉTICA
Vem de quê o poema? De quanto serve
A traçar a esquadria da semente:
Flor ou erva, floresta e fruto.
Mas avançar um pé não é fazer jornada,
Nem pintura será a cor que não se inscreve
Em acerto rigoroso e harmonia.
Amor, se o há, com pouco se conforma
Se, por lazeres de alma acompanhada,
Do corpo lhe bastar a presciência.

Não se esquece o poema, não se adia,
Se o corpo da palavra for moldado
Em ritmo, segurança e consciência.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

PROCESSO
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por casa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

«SE NÃO TENHO OUTRA VOZ…»
Se não tenho outra voz que me desdobre
Em ecos doutros sons este silêncio,
É falar, ir falando, até que sobre
A palavra escondida do que penso.

É dizê-la, quebrado, entre desvios
De flecha que a si mesma se envenena,
Ou mar alto coalhado de navios
Onde o braço afogado nos acena.

É forçar para o fundo uma raiz
Quando a pedra cabal corta caminho
É lançar para cima quanto diz
Que mais árvore é o tronco mais sozinho.

Ela dirá, palavra descoberta,
Os ditos do costume de viver:
Esta hora que aperta e desaperta,
O não ver, o não ter, o quase ser
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

BALANÇA
Com pesos duvidosos me sujeito
À balança até hoje recusada.
É tempo de saber o que mais vale:
Se julgar, assistir, ou ser julgado.
Ponho no prato raso quanto sou,
Matérias, outras não, que me fizeram,
O sonho fugidiço, o desespero
De prender violento ou descuidar
A sombra que me vai medindo os dias;
Ponho a vida tão pouca, o ruim corpo,
Traições naturais e relutâncias,
Ponho o que há de amor, a sua urgência,
O gosto de passar entre as estrelas,
A certeza de ser que só teria
Se viesses pesar-me, poesia.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

NO CORAÇÃO, TALVEZ
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta,
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

DESTINO
Risco no chão um traço, à beira água:
Não tarda que a maré o deixe raso.
Tal e qual o poema. É comum sorte
Que areias e poemas tanto valham
Ao vaivém da maré, vem-vem da morte.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

PASSADO, PRESENTE, FUTURO
Eu fui. Mas o que fui já me não lembra:
Mil camadas de pó disfarçam, véus,
Estes quarenta rostos desiguais,
Tão marcados de tempo e macaréus.

Eu sou. Mas o que sou tão pouco é:
Rã fugida do charco, que saltou,
E no salto que deu, quanto podia,
O ar dum outro mundo a rebentou.

Falta ver, se é que falta, o que serei:
Um rosto recomposto antes do fim,
Um canto de batráquio, mesmo rouco,
Uma vida que corra assim-assim.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

CIRCO
Poeta não é gente, é bicho coiso
Que da jaula ou gaiola vadiou
E anda pelo mundo às cambalhotas
Recordadas do circo que inventou.

Estende no chão a capa que o destapa,
Faz do peito tambor, e rufa, salta,
É urso bailarino, mono sábio,
Ave torta de bico e pernalta.

Ao fim toca a charanga do poema,
Caixa, fagote, notas arranhadas,
E porque bicho é, bicho lá fica,
A cantar às estrelas apagadas.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

OCEANOGRAFIA
Volto as costas ao mar que já entendo,
À minha humanidade me regresso,
E quanto há no mar eu surpreendo
Na pequenez que sou e reconheço.

De naufrágios sei mais que sabe o mar,
Dos abismos que sondo, volto exangue,
E para que de mim nada o separe,
Anda um corpo afogado no meu sangue.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

SALMO 136
Nem por abandonadas se calavam
As harpas dos salgueiros penduradas.
Se os dedos dos hebreus as não tocavam,
O vento de Sião, nas cordas tensas,
A música da memória repetia.
Mas nesta Babilónia em que vivemos,
Na lembrança Sião e no futuro,
Até o vento calou a melodia.
Tão rasos consentimentos nos pusessem,
Mais do que os corpos, as almas e as vontades,
Que nem sentimos já o ferro duro,
Se do que fomos deixaram as vaidades.

Têm os povos as músicas que merecem.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

OUVINDO BEETHOVEN
Venham leis e homens de balanças,
mandamentos d’aquém e d’além mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças,
desça em nós o juízo até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
relógios a marcar a hora exacta.
Não aceitem nem queiram outra arte
que a prosa de registo, o verso acta.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
cercados de bastões e fortalezas,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

DEMISSÃO
Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

CONTRACANTO
Aqui, longe do sol, que mais farei
Senão cantar o bafo que me aquece?
Como um prazer cansado que adormece
Ou preso conformado com a lei.

Mas neste débil canto há outra voz
Que tenta libertar-se da surdina,
Como rosa-cristal em funda mina
Ou promessa de pão que vem nas mós.

Outro sol mais aberto me dará
Aos acentos do canto outra harmonia,
E na sombra direi que se anuncia
A toalha de luz por onde vá.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

ENIGMA
Um novo ser me nasce em cada hora.
O que fui, já esqueci. O que serei
Não guardará do ser que sou agora
Senão o cumprimento do que sei.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

§§

«NÃO ME PEÇAM RAZÕES…»
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

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«NÃO ESCREVAS POEMAS DE AMOR»
(Rainer Maria Rilke)
Porquê, Rainer Maria? Quem impede
O coração de amar, e quem decide
Das vozes que no verso se articulam?
Que há que nos imponha a cabra-cega
De somar infinito a infinito?
Essa escada tão longa que subiste
Quebrou-se no vazio, quando a sombra
Do Outro nos degraus se repartia.
À vertigem aérea do teu voo
Oponho eu a dimensão do passo,
Terrestre sou, e deste haver terrestre,
Homem me digo homem, poemas faço.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

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EXÍLIO
Mais valera que fossem pedras secas,
Caminhos de nó cego e de moscardos,
Ou paisagens sulfúreas, onde os passos,
Como de sombra vaga, não soassem.
Mas o mato rescende, e sob o vento
As nuvens, como um corpo, vão roçando
Quatro montes irónicos que desenham,
Impossíveis, as formas doutro corpo.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

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POENTE
Que podes mais dizer-me que não saiba,
Veio do sol sangrada para a terra,
Manso esgarçar de névoa refrangida
Entre o azul do mar e o céu vermelho?
Já há tantos poentes na lembrança,
Tantos dedos de fogo sobre as águas,
Que todos se confundem quando, noite,
Posto o sol, se fecham os teus olhos.
– José Saramago, em “Os Poemas Possíveis”. 6ª ed., Lisboa: Editorial Caminho, 1997.

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