terça-feira, julho 29, 2025

O tempo que não volta e a beleza da ausência: um tributo a Marcelo Beraba, por Paulo Baía

Era o ano de 1978. A ditadura ainda sufocava os pulmões do país, mas a respiração da esperança já se fazia ouvir em ruas, salas, assembleias e corações. Lutava-se pela Anistia, por uma Assembleia Constituinte, por um país em que fosse possível sonhar sem medo. Foi nesse contexto de luta e reinvenção da vida que conheci Marcelo Beraba. Não nos corredores formais do jornalismo ou da política, mas na doce intimidade da espera pela chegada de nossas primeiras filhas.
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Àquela altura, a ideia de casal grávido era uma rebeldia em si. Vivíamos tempos de machismo estrutural, inclusive dentro das fileiras mais progressistas e militantes da esquerda. A gravidez, com todos os seus mistérios e transformações, era encarada como algo exclusivamente feminino, algo de que os homens se abstinham, salvo pelos nomes nas certidões. Mas havia em nós, em nosso pequeno grupo de seis casais, um desejo radical de romper esse isolamento. Foi assim que, todas as terças e quintas-feiras à noite, nos encontrávamos na Rua Marquesa de Santos, em Laranjeiras, perto do Largo do Machado. Ali, de mãos dadas com a psicóloga e ativista Vitória e entre almofadas e esperanças, aprendíamos a ser mais do que homens, mais do que mulheres. Aprendíamos a ser um casal grávido, inteiro, cúmplice, participante da gestação em sua inteireza afetiva e simbólica.

Foram quatro meses de encontros, aprendizados e afetos. E foi ali, entre conversas sobre parto, aflições sobre o futuro, cuidados com os corpos e desejos de uma paternidade diferente, que construí uma amizade com Marcelo Beraba que me marcou para sempre. Ele era já, àquela altura, um jovem jornalista de brilho particular. Corajoso, inquieto, criativo. Tinha aquele olhar que via além da superfície das coisas. Um olhar que investigava, desnudava, mas também acolhia.
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Sua companheira na época tornou-se uma amiga de jornada no magistério. Ela na Universidade Federal Fluminense. Eu na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Aqueles encontros noturnos em Laranjeiras nos forjaram como pais e como pessoas. Não era apenas o ventre de nossas companheiras que crescia. Cresciam também em nós a sensibilidade, a escuta, a delicadeza, o desejo de cuidar, de proteger, de transformar o mundo a partir de nossa própria transformação. E era nesse ponto que Marcelo era diferente de tantos outros. Ele não fingia saber. Ele queria aprender. Ele se despia das certezas masculinas herdadas para habitar o novo. Isso, em 1978, era revolucionário.

Tenho saudades daquele tempo. Saudades imensas daqueles encontros que duravam três horas, mas ecoaram por toda uma vida. Saudades de ver Marcelo sorrir diante dos absurdos da vida, tentando sempre compreender antes de julgar, narrar antes de condenar. Saudades de nossas conversas sobre o país, sobre nossas filhas, sobre a delicada arte de existir entre o jornalismo e a utopia.
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Hoje, diante da notícia de sua morte, aos 74 anos, no dia 28 de julho de 2025, sinto um vazio silencioso que nenhum editorial saberia preencher. A morte de Marcelo Beraba empobrece a humanidade, sim. E não é força de expressão. Empobrece porque ele era daqueles homens raros que sabiam que a vida não se resume a manchetes ou análises. Ele sabia que a vida também mora nas entrelinhas, nos silêncios das salas de espera, nas mãos dadas diante do parto iminente, na partilha de dúvidas e medos entre homens que, por uma vez, ousaram desobedecer ao papel que lhes foi imposto.
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Sinto tristeza por não ter tido com Marcelo uma convivência mais intensa, mais permanente, mais cotidiana. A vida, com sua pressa e seus labirintos, nos levou por caminhos distintos. Mas mesmo o pouco tempo que compartilhamos teve densidade de eternidade. Quatro meses podem ser um suspiro para o calendário, mas para a memória afetiva são uma eternidade bordada em afeto, riso e transformação.
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Ao longo dos anos, acompanhei de longe sua trajetória luminosa. Sempre que lia uma crônica, uma análise, uma entrevista conduzida por ele, sentia aquele calor antigo de Laranjeiras se reacender. Era como se, de algum modo, ele ainda estivesse ali. Sentado numa almofada, tentando entender as dores do mundo com o mesmo empenho com que quis compreender o mistério da gestação.
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O jornalismo brasileiro perde um mestre. A democracia perde um defensor. A memória perde um guardião. E eu perco um amigo de uma intensidade breve, mas inesquecível. Perco aquele que dividiu comigo os primeiros passos de uma paternidade sensível, crítica e cheia de esperança.

Gostaria de ter lhe dito mais vezes o quanto aqueles encontros me transformaram. Gostaria de ter caminhado mais ao seu lado. Mas talvez Marcelo soubesse. Do seu jeito calmo, firme, generoso. Que há amizades que não precisam do cotidiano para serem profundas. Há amizades que se bastam de um tempo curto, mas vivido com verdade, com entrega, com humanidade.
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Hoje, enquanto escrevo, penso que talvez sejamos todos casais grávidos do que Marcelo nos deixou. A semente da escuta, o compromisso com a verdade, a ternura como linguagem política, o jornalismo como ética e poética da vida pública. Talvez sejamos todos, agora, portadores de sua herança. Um jeito bonito de olhar o mundo com olhos críticos, mas coração aberto.
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Marcelo Beraba partiu. Mas deixou em mim, e certamente em tantos outros, a lembrança doce de uma amizade que floresceu entre fraldas e utopias, entre a dor da ditadura e o milagre da vida. Ele partiu. Mas há ausências que ocupam mais espaço do que muitas presenças. E a dele é uma dessas. Linda, intensa, insubstituível.
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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