Paulo Baía

O reino labirinto: Kafka do como sociólogo do presente e o grito como esperança, por Paulo Baía

Há uma névoa densa que pesa sobre o mundo como um véu de papel timbrado. Ela não cai com a força súbita das tempestades míticas, não ruge como os trovões da tragédia antiga, mas se insinua com a lentidão dos hábitos, infiltra-se nos dias como poeira acumulada nas dobras da existência. Tudo nela é norma, código, autenticação, carimbo. Um mar de papéis afoga a vida. O gesto mais simples exige confirmação, o desejo mais íntimo tropeça em um protocolo, e a dor precisa ser comprovada em três vias, com firma reconhecida. Caminha-se entre repartições e sistemas, sistemas que contêm outros sistemas, plataformas que não respondem, vozes automáticas que não escutam. A burocracia se instala como ar irrespirável, como ausência disfarçada de organização. E o mais trágico é que tudo parece normal. A desumanização não é mais uma ameaça: é o chão. Milan Kundera, leitor profundo do abismo, enxergou esse futuro encarnado no presente quando escreveu: “a burocratização da atividade social que transforma todas as instituições em labirintos a perder de vista; a despersonalização do indivíduo resultante disso”.
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Kundera, ele mesmo fruto e testemunha do esmagamento burocrático dos regimes socialistas, conheceu em carne viva o que significa habitar um mundo onde o Estado se diviniza e a norma substitui o juízo. Seu olhar é amargo, mas jamais cínico. Sua crítica ao totalitarismo não é panfleto. É análise literária e filosófica da degradação do humano diante da máquina do poder. Ele reconheceu em Franz Kafka não apenas um grande autor, mas um vidente moderno. Kafka, disse ele, produziu “hipérboles oníricas” da nossa realidade mais prosaica. Suas obras não descrevem o que foi, mas o que é. Mais ainda: Kafka não é apenas um escritor. Não é apenas o nome de um prêmio ou o símbolo de uma literatura hermética. Nos tempos atuais, Kafka é sociólogo do tempo presente. Antropólogo da angústia. Cronista dos labirintos. Seus romances são estudos rigorosos sobre o desaparecimento do sujeito diante das engrenagens do mundo moderno. Sua ficção é teoria. Sua alegoria é diagnóstico.

M. C. Escher – Relativity, 1953

E o diagnóstico é cruel. A despersonalização, esse processo lento e contínuo de dissolução do indivíduo, não se limita a regimes autoritários. Ela é global, transversal, cosmopolita. É o que resta quando a vida é mediada por sistemas que não veem, por instâncias que não escutam, por regras que não consideram o imprevisto, o singular, o humano. O kafkiano, hoje, é a espera infindável de quem precisa de atendimento no SUS, de quem aguarda a perícia do INSS, de quem tenta acessar a justiça trabalhista, de quem clama por um direito e encontra apenas portais, protocolos e prazos. O kafkiano é o silêncio da máquina. É a resposta automática. É a sentença que não chega. É a dúvida que não tem voz. A profecia kafkiana tornou-se cotidiano. E não só no Brasil. No mundo inteiro. Como advertiu Kundera: “todo o planeta tornou-se o cenário desse processo”.
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Essa universalização da burocracia tem raízes profundas. A modernidade ergueu o ideal da razão como estrutura da ordem, e a burocracia tornou-se seu instrumento privilegiado. Está presente nos impérios, nos mosteiros, nas cortes, nas colônias. Mas é com a racionalização estatal e capitalista que ela alcança sua plenitude monstruosa. No socialismo real do bloco soviético, esse monstro burocrático devorou a esperança revolucionária. A ausência de democracia, o controle absoluto das estruturas, a hierarquia imutável e a vigilância cotidiana transformaram a utopia da igualdade em uma engrenagem sombria e paralisante. A burocracia ali não era falha: era método, era forma de poder, era a própria lei. O burocrata socialista não era apenas executor. Era soberano. Sabia negar, adiar, arquivar. Sabia fazer sumir. No capitalismo, a engrenagem muda de nome, mas não de lógica. As empresas privadas criaram seus próprios tribunais de papel, seus comitês de aprovação, seus contratos labirínticos, suas metas inatingíveis, seus atendentes automáticos. No Ocidente, a promessa de liberdade transformou-se na obrigação de navegar sistemas. E em ambos, socialismo e capitalismo, o resultado foi o mesmo: a anulação da vida concreta em nome da abstração normativa.

Nos regimes autoritários, a burocracia se consagra como doutrina de controle. Não há poder fora da norma, e não há norma fora do poder. A regra substitui o critério, a obediência substitui o pensamento. Nos Estados democráticos contemporâneos, o fenômeno não desaparece: apenas se suaviza. Mas sua violência é difusa, permanente, cotidiana. Um cidadão não é um sujeito de direitos: é um número de protocolo. Sua voz não ecoa. É redirecionada. Sua dor não é ouvida. É categorizada. E agora, com a digitalização do cotidiano, a burocracia adquire feições ainda mais sinistras. O reconhecimento facial nas ruas captura os rostos sem diálogo. A biometria exige provas de identidade que o corpo por si já não garante. Robôs atendem chamadas e confundem angústia com erro de pronúncia. Assistentes digitais impõem menus padronizados a necessidades únicas. A inteligência artificial é apenas a continuação do kafkiano por outros meios. Mais rápidos, mais eficientes, mais desumanos. Já não há sequer um olhar frio. Há apenas telas. Há apenas algoritmos. E ninguém mais sabe a quem apelar.
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No Brasil, país de tradições coloniais e práticas cartoriais, o drama é ainda mais visível. A certidão é a chave da existência. A ausência de um selo pode negar o mundo. O tempo se perde nas filas, nas esperas, nos retornos, nos pedidos de mais um documento. A pobreza é punida com exigências. A dor é desacreditada sem provas. A política se transforma em gestão. O gestor é exaltado como herói. A governança é vendida como justiça. E, assim, as formas de controle são interiorizadas como progresso. Fala-se em transparência, mas o que se pratica é a ocultação. Fala-se em eficiência, mas o que se institui é a indiferença. Fala-se em acesso, mas o que se executa é exclusão. A máquina não falha. Ela funciona exatamente como foi desenhada: para dificultar, para adiar, para afastar. A burocracia não é imperfeição. É projeto.

M.C. Escher – Eye, mezzotint, seventh and final state, October 1946

Mas como em todo inferno, há uma fresta. Um lampejo. Um grito. Um pequeno gesto de insubordinação. Talvez o político, o verdadeiro, ainda esteja escondido nesse instante em que alguém diz não. Em que alguém desacata uma norma absurda. Em que alguém desobedece em nome da solidariedade. Talvez o futuro comece quando se para uma fila para ouvir um nome. Quando se interrompe um protocolo para escutar uma história. Quando se questiona uma exigência em nome de um cuidado. Kafka não escreveu apenas literatura: escreveu advertência. Kundera não apenas comentou suas obras: desvelou sua atualidade. O kafkiano não é estilo. É destino. Mas também pode ser ruptura.
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Que o grito se transforme em linguagem. Que a recusa se torne gesto. Que a política se reencontre com o rosto, com a voz, com o tempo de quem vive. Que as instituições deixem de ser labirintos e se tornem morada. Que o humano volte a ser critério, e não obstáculo. A burocracia não pode mais ser o destino da civilização. É hora de rasurar os formulários. De apagar as senhas. De devolver à vida sua espontaneidade radical. Mesmo que isso seja o mais difícil. Mesmo que isso pareça insano. Mesmo que isso, no fim, seja o verdadeiro começo.
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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