Minha primeira reação foi de indignação moral. O fedor da corrupção empesteou o ar. Isso tem sido comum na história da política. Nem mesmo a Dinamarca escapou. “Há algo podre no reino da Dinamarca!”, Shakespeare escreveu no “Hamlet”.
Aí vieram as explicações. O fedor era uma ilusão. Flatulências da oposição. Mas os instrumentos para detecção de odores mostravam que o fedor existia, sintoma de que havia algo podre também na República do Brasil.
Veio depois o espanto psicótico. Percebeu-se que o mau cheiro era produzido não só por intestinos apodrecidos pela corrupção mas também por mentes apodrecidas pela loucura.
Mas o que sinto agora é outra coisa: horror estético. Tudo ficou grotesco. Barreto Pinto: somente os velhos se lembram do nome desse deputado. Apareceu na revista “O Cruzeiro” vestido de sobrecasaca e cueca samba-canção. Sobrecasacas são vestimentas de suprema nobreza. Usam-nas os regentes de orquestra, os pianistas, personalidades ilustres em cerimônias de grande pompa. Por outro lado, não havia nada de indecente numa cueca samba-canção. Todos os homens as usavam. E as mulheres gostavam de ver os seus homens na intimidade usando as ditas cuecas, as únicas que havia. Imagino até que as cuecas samba-canção as excitassem. Eram símbolos masculinos. Mas juntar sobrecasaca com cueca samba-canção é, definitivamente, grotesco. Não só grotesco como psicanaliticamente revelador: em cima, o corpo dignificado pela beleza atemporal da casaca, a máscara. Embaixo, o inconsciente, o corpo revelado e humilhado na verdade que as calças escondem, as pernas finas de velho saindo pela boca larga da cueca branca. Seus colegas parlamentares sentiram vergonha. Não o perdoaram. Foi cassado por quebra do decoro parlamentar.
Fiquei intrigado com o sentido da palavra “decoro”. Não posso me valer de um dicionário porque estou escrevendo de um lugar numa serra de Minas onde não há dicionários. Valer-me-ei do meu dicionário particular que mora na minha memória: “Decoro parlamentar, s.m. Refere-se ao estilo de comportamento verbal e corporal que um parlamentar deve ter para que as normas da estética não sejam quebradas”. Se não é isso, fica sendo…
Corrupção se castiga. Loucura se trata. Mas o grotesco é inesquecível. Quem viu não esquece mais. E embora poucos saibam disso, um povo precisa de beleza. É da beleza que nasce a esperança. O Hino Nacional é belo. Lembram-se da Fafá de Belém cantando nos comícios pelas “Diretas Já”? Todo mundo tremia e chorava por causa da beleza. A bandeira é bela, ondulada pelo vento. Quantas coisas bonitas a bandeira evoca no seu silêncio! Meu filho chorou ao vê-la pendida triste, enrolada no mastro, humilhada, escondendo-se de vergonha… E o Congresso, como um dos símbolos da nação, tem também de ser belo!
Mas isso ele não é. É impossível esquecer o grotesco: os deputados elegeram o Severino como seu modelo. O tempo passou. O grotesco ficou. A Câmara ficará severinomórfica por muito tempo…
Lembro-me da sessão em que Collor foi cassado. Todos os deputados se sabiam vistos pelo povo. Queriam posar de heróis. Vestiram suas palavras com casacas. E a cada nome que se chamava ouvia-se o ridículo: “Por Deus, pela pátria, pela família, sim, senhor presidente!”, “Pela honestidade, pela justiça, pelo Brasil, sim, senhor presidente!”. E assim, sem fim… Eu fiquei com vergonha. As sobrecasacas verbais não escondiam as pernas finas que saíam das cuecas samba-canção.
Estou cansado do grotesco. Quem nos devolverá a alegria da beleza?
Rubem Alves, no caderno ‘Cotidiano’. in: Folha de S. Paulo, 24 de janeiro de 2006.
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