LITERATURA

O padeiro – Rubem Braga

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento — mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a “greve do pão dormido”. De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
— Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a ideia de gritar aquilo?

“Então você não é ninguém?”

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: “não é ninguém, não, senhora, é o padeiro”. Assim ficara sabendo que não era ninguém…

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina — e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “não é ninguém, é o padeiro!”
E assobiava pelas escadas.

Rio, maio, 1956.

— Rubem Braga, no livro “Ai de ti, Copacabana”. Rio de Janeiro: Record, 2010.

Saiba mais sobre Rubem Braga:
Rubem Braga – entrevistado por Clarice Lispector
Rubem Braga – o caçador de ventos e melancolias

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Thiago Miranda lança álbum ‘NorDestino’ nas plataformas digitais

O cantor e compositor Thiago Miranda lança o álbum NorDestino, inspirado pela conexão com o…

6 horas ago

Espetáculo ‘Dingo-Dingo’ em única apresentação no Sesc Interlagos

Infância, ancestralidade e cultura Bantu se encontram em Dingo-Dingo, no Sesc Interlagos. Montagem une teatro,…

7 horas ago

Alaíde Costa lança álbum ‘Uma Estrela Para Dalva’

A cantora e compositora Alaíde Costa lança “Uma Estrela Para Dalva”, álbum com tributo à Dalva…

9 horas ago

Espetáculo ‘Bárbara’ com Marisa Orth estreia curta temporada no Teatro Bravos

Assistida por mais de 70 mil pessoas, Bárbara, estrelado por Marisa Orth, retorna ao Teatro…

9 horas ago

Quinteto Undo lança single ‘Porcos Não Olham Pro Céu’

Em "Porcos Não Olham Pro Céu", quinteto Undo sugere resistência em tempos sombrios. Terceiro single…

10 horas ago

Espetáculo celebra clássicos infantis arranjados por Heitor Villa-Lobos

Dani Mattos e o grupo vocal Poucas & Boas relembram canções folclóricas brasileiras em espetáculo…

10 horas ago