Paulo Baía

O mundo se habituou ao excesso, por Paulo Baía

Há palavras que nascem sagradas. Vêm ao mundo com peso de sinos, com a gravidade das coisas que não podem ser adiadas. “Urgente” era uma dessas. Não um simples adjetivo, mas um chamado, um clarim que separava o trivial do essencial. Hoje, no entanto, ela vaga esvaziada pelas ruas do cotidiano, ferida por repetição, gasta pela pressa, prostituída pela banalidade. Já não causa espanto. Já não convoca. Apenas sussurra, entre resmungos e notificações, como quem perdeu o dom da diferença.
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O mundo se habituou ao excesso. Tudo corre, tudo grita, tudo quer agora. A urgência virou uma febre que nos empalidece a alma. Já não distinguimos o incêndio do fósforo aceso. A fila do pão e o colapso do mundo compartilham a mesma respiração ofegante. Somos empurrados, todos os dias, para o abismo da simultaneidade absoluta, onde nada tem tempo de ser inteiro, nem de ser verdadeiramente vivido.

E nesse turbilhão, esquecemos o que é, de fato, urgente. Esquecemos de escutar o silêncio do outro, de notar o cansaço escondido nos olhos, de perceber o grito que não vem da boca, mas do gesto interrompido. Urgente, talvez, seja pedir desculpas. Urgente, talvez, seja dar um abraço. Urgente, quem sabe, seja dormir em paz, deixar o telefone de lado, ou simplesmente existir com leveza por alguns instantes. Mas disso ninguém fala. Porque essas urgências são mudas.
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A ausência de hierarquia nos afetos, nas necessidades, nos dias — eis o colapso. Quando tudo se quer primeiro, quando tudo exige agora, tudo perde o valor. A vida, sem gradação, torna-se ruído. E o ruído, quando constante, ensurdece. Já não há espaço para o tempo dos outros, nem para o nosso. Tornamo-nos máquinas de resposta, operários da pressa, incapazes de distinguir o que se desfaz se não for feito hoje daquilo que floresce na lentidão.

A convivência, esse pacto delicado entre corpos e tempos distintos, requer uma delicadeza que desaprendemos. É preciso reaprender a esperar, a ouvir sem interromper, a respirar antes de reagir. O respeito tem ritmo, tem pausa, tem silêncio. Só se educa para a vida quem compreende que o tempo é plural. E só se convive com o outro quem reconhece que a pressa é inimiga da escuta — e que, às vezes, a espera é um gesto de amor.
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Talvez devêssemos devolver à palavra “urgente” a sua dignidade antiga. Reservá-la ao que verdadeiramente ameaça, ao que verdadeiramente clama. Recolhê-la do caos, lavá-la com o suor da empatia, vesti-la novamente com a roupa do essencial. Para que, quando dita, ela volte a ter o poder de convocar, de mover, de transformar. Para que, enfim, possamos distinguir o que é barulho do que é apelo.
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E assim, quem sabe, possamos viver com mais profundidade. Não como quem corre atrás do tempo, mas como quem o cultiva. Como quem planta pausas, rega silêncios, colhe presenças. E entende, enfim, que há urgências que só o tempo pode curar — e que o verdadeiro sentido da urgência é preservar aquilo que, sem cuidado, morre.
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[Cabo Frio/RJ, 11 de abril de 2025].
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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