O mito da boa escola pública no passado
– por Antônio Gois*

No ano passado, recebi de um leitor um convite para que conhecesse estudos de seu avô, Mario Augusto Teixeira de Freitas (1890-1956), sobre números da educação brasileira nas décadas de 30 e 40. Teixeira de Freitas foi uma das figuras mais importantes na criação do IBGE, mas eu desconhecia seus trabalhos na área de educação. Não deveria, pois seu esforço em organizar na época estatísticas educacionais do país e, a partir delas, pensar em soluções para a melhoria da qualidade do ensino público já era reconhecido por educadores do calibre de Fernando de Azevedo, Anisio Teixeira e Lourenço Filho.

A leitura dos livros de Teixeira de Freitas mostra que ele já identificava problemas que ainda hoje limitam nosso avanço na educação. E serve também para derrubar alguns mitos. Um deles é a ideia de que nossa escola pública era boa no passado, quando atendia a poucos, mas que perdeu qualidade ao se massificar na segunda metade do século XX.

Que a escola pública do passado era para poucos, não há discussão. Segundo o Censo do IBGE de 1940, 69% das crianças de 7 a 14 anos não estudavam no país. Porém, ao analisar as estatísticas da década de 30 no livro “O Ensino Primário Brasileiro no Decênio 1932-1941”, Teixeira de Freitas identifica que o principal problema não estava na falta de vagas ou no desinteresse por parte das famílias de enviarem seus filhos para estudar. O problema, já naquela época, era a péssima qualidade do ensino. “A nação já envia à escola, nas zonas urbanas, 95% dos seus infantes, e, nas áreas rurais, mais da metade deles”, escreveu o pesquisador em 1946.

Se a maioria dos alunos era enviado à escola, como explicar que sete em cada dez crianças na faixa de 7 a 14 não estudavam? A resposta estava nas absurdas taxas de reprovação e abandono na primeira série do ensino primário, equivalente hoje ao segundo ano de nosso ensino fundamental (para crianças de sete anos). Na mesma obra citada, Teixeira de Freitas identifica que a matrícula no primeiro ano do primário era já próxima do total de alunos da faixa etária no país. Porém, uma análise mais detalhada mostra que mais da metade dos matriculados nessa série era de alunos repetentes, que acabavam nos anos seguintes desistindo de estudar.

“A causa disto? Aponta-a a estatística de maneira impressionante: é a ineficiência do ensino. A atuação da escola, em vez de aproveitar, sob salutares estímulos, a tenacidade do discipulado, transforma-a em estagnação patológica, que se traduz por enorme repetência, máxime na 1a série, a repercutir nas séries superiores como aparente evasão escolar, quando esta é, em verdade, a desistência fatigada dos alunos após prolongado insucesso”, diz o autor no livro, para em seguida refletir sobre a responsabilidade por esse fracasso.

“Mas tão grande ineficiência ocorreu, acaso, por culpa dos alunos? Ou das famílias? Não. Por culpa exclusiva da organização escolar. A Nação – agora já se vê isto inequivocamente – vem cumprindo o seu dever onde quer que disponha de escola aonde mandar os seus filhos. Mas a Escola não tem cumprido o seu, deixando de educar as crianças que a Nação de fato lhe confia ao levá-las à inscrição insistentemente – e por certo sob penosos sacrifícios – mas em pura perda.”

Certamente existiam boas escolas públicas no passado, como há atualmente também algumas. O problema, ontem e hoje, é que apenas uma minoria de alunos progredia no sistema e conseguia chegar aos melhores colégios públicos do país.

PS – Na biblioteca virtual do IBGE, é possível fazer o download gratuito de alguns dos livros de Teixeira de Freitas sobre educação, e de algumas publicações do pesquisador Nelson Senra sobre sua obra.

O livro “O Ensino Primário Brasileiro no Decênio 1932-1941” está disponível na biblioteca do IBGE para download neste link.

Também sobre Teixeira de Freitas, ainda sobre educação, é possível acessar o livro “Teixeira de Freitas: Um Cardeal da Educação Brasileira”. Veja o link aqui.

Outro livro sobre Teixeira de Freitas, esse não restrito à educação, é “Teixeira de Freitas e a Criação do IBGE: Correspondências de um homem singular e plural”, de Nelson Senra, acessível neste link.

*Antônio Gois é colunista do Globo e comentarista de educação do Canal Futura, tema que cobre desde 1996.

Fonte: Blogs OGlobo







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