Foi no WhatsApp, claro. Porque, em 2025, até conversa séria começa com emoji. A notificação pulou na tela como quem diz “é agora”. Era Luiz Henrique, meu primo, aquele parente diferenciado que trocou o calor do Rio de Janeiro pela inquietude concreta de São Paulo. Luiz Henrique não manda só mensagem, ele envia provocações em forma de insight. Quando ele escreve, você não responde com “kkk”. Você senta. Lê. E começa a pensar.
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“Você já viu ou reviu Azyllo Muito Louco nos últimos tempos?”, perguntou ele, como quem pede pra você beber um copo d’água durante um incêndio.
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Claro que conhecia. O filme de Nelson Pereira dos Santos, aquele gênio do cinema brasileiro do século 20 que filmava como quem compunha música de protesto com câmera e coragem. Adaptação livre, vibrante, satírica e tropicalista de O Alienista, obra-prima do nosso Machado de Assis, o maior literato do Brasil. E quem discorda, sinto muito, pode se auto-internar.
Machado foi além do tempo. O primeiro escritor brasileiro a usar a ironia como bisturi. Em O Alienista, escreveu uma sátira sobre um médico obcecado por curar a loucura. Aos poucos, passa a diagnosticar todos como doentes. Gente que ri demais, chora de menos, pensa com autonomia, discorda do consenso, ama o silêncio, odeia reuniões. Enfim: todos suspeitos. Todos internáveis. Genial.

“É que hoje tem milhões de Bacamartes com smartphone na mão, diagnosticando tudo em tempo real” completou Luiz Henrique. E não tem como discordar. Ele tem razão. Aliás, o problema é esse: todos acham que têm razão o tempo todo. O Brasil de 2025 virou um grande consultório virtual onde qualquer um pode, com apenas um story, cancelar, corrigir, curar ou crucificar alguém.
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A gente vive cercado por especialistas em comportamento alheio. Gente que, aos gritos ou sorrisos, decide quem está do lado certo e quem precisa de camisa de força digital. Os loucos de hoje não são os que perderam a razão, mas os que desafiam a normalidade vigente. Quem canta fora do tom, quem escreve sem algoritmo, quem desenha o que não foi encomendado, quem pensa por conta própria. Esses sim, precisam ser “tratados”.
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Luiz Henrique dizia: “Esse filme tem que voltar. Tem que ser exibido em praça pública, em festival de rua, em grupo de zap de família. Porque o que era delírio virou notícia. O que era sátira agora é só quarta-feira.” E de novo, ele estava certo.
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Falamos também do Rio de Janeiro. E aqui faço a devida correção ao que se espalha por aí. Não, o Rio não está decadente. O Rio está em mutação. É uma cidade que se reconfigura, se reinventa, se prepara. O turismo segue excelente, diverso, cheio de opções. As paisagens continuam seduzindo o planeta. Mas mais que isso: o Rio se especializou. Virou polo de produção de telenovelas, fortaleceu sua base científica e tecnológica, organiza eventos de porte internacional com um calendário que já não depende só de carnaval e réveillon. O Rio não acabou. Está, como todos nós, passando por uma metamorfose.
Mas São Paulo. Ah, São Paulo. Luiz Henrique não deixa esquecer: a cidade que o acolheu segue insaciável. É o maior polo artístico, cultural, gastronômico e financeiro do país. É palco e bastidor, microfone e teclado, palco e coxia, padoca e balada, tudo ao mesmo tempo. A cidade nunca para. E é nesse calor produtivo que Luiz Henrique pulsa. Ele vive entre ideias, roteiros, eventos, edições, diálogos, takes, cortes e crises de orçamento, mas sempre com humor e propósito.
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E foi ali, entre um áudio e outro, que ele soltou a frase que me pegou: “Hoje o maior manicômio é o da solidão digital”.
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Porque é isso. Estamos todos conectados, mas cada vez mais sozinhos. Opinar virou obrigação. Ter certeza virou currículo. Pensar com calma virou luxo. Discordar virou afronta. A pressa virou protocolo. E o silêncio, que antes era reflexão, agora é suspeito.
Nelson Pereira dos Santos filmou um hospício para rir da sanidade. Machado escreveu um médico para nos lembrar que o pior tipo de loucura é querer controlar a dos outros. E em 2025, a gente assiste ao remake em tempo real. Só que sem créditos finais.
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É por isso que essa conversa com Luiz Henrique me fez rir, pensar e querer sair correndo para abraçar um artista. Porque são eles, os músicos, dançarinos, escritores, fotógrafos, poetas, performers, roteiristas, diretores, iluminadores, figurinistas, montadores, técnicos de som e imagem, toda essa legião de fazedores de cultura, que ainda seguram as janelas abertas. Eles que garantem que a gente respire fora da sala de isolamento onde a lógica binária quer nos trancar.
Então, aqui vai minha saudação. A Luiz Henrique, meu primo, meu cronista audiovisual do cotidiano. A Nelson Pereira dos Santos, nosso cineasta do impossível. A Machado de Assis, que previu com palavras o que hoje se confirma com algoritmos. E a todos os que criam, desenham, cantam, escrevem, dançam, recitam, dirigem, filmam, gravam, editam e vivem para lembrar que civilização também se faz com afeto, com humor, com dissonância, com beleza, com perguntas.
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Porque se for para ser internado, que seja numa sala de teatro. Numa livraria. Num estúdio de gravação. Numa roda de samba. E que nos deem alta apenas quando a gente esquecer que a vida precisa de padrão. E lembrar que a sanidade, às vezes, é só uma pausa mal dada no roteiro da nossa loucura mais criativa.
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[Cabo Frio/RJ, 5 de agosto de 2025]
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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