O educador

[…] creio que devemos preparar no educador mais o espírito que o mecanismo do cientista, o que vale dizer que a direção dessa preparação deve estar voltada para o espírito.

Jamais pretendemos, evidentemente, transformar o educador elementar num assistente de antropologia ou de psicologia científica, nem, tampouco, num higienista. Desejamos, porém, dirigi-lo no caminho da ciência experimental, ensinando-o a manejar um pouco cada um dos seus instrumentos, limitando esse aprendizado ao objetivo em vista e orientando-o na via do espírito científico.

Devemos despertar na consciência do educador o interesse pelas manifestações dos fenômenos naturais em geral, levando-o a amar a natureza e a sentir a ansiosa expectativa de todo aquele que aguarda o resultado de uma experiência que preparou com cuidado e carinho.

Os instrumentos são como as letras do alfabeto e é preciso saber manejá-los para poder ler na natureza; assim como o livro, que encontra no alfabeto o meio de compor as palavras reveladoras dos mais profundos pensamentos, assim, também, a natureza, graças ao mecanismo da experiência, revela a infinita série dos seus segredos.

Ora, qualquer pessoa que saiba soletrar as palavras de uma cartilha pode, a rigor, ler as de uma obra de Shakespeare. Da mesma forma, quem é iniciado unicamente na técnica da experimentação é comparável ao que apreende apenas o sentido literal das palavras que soletra na cartilha. Deixaríamos os educadores nesse nível se limitássemos a sua preparação ao mecanismo.

Pelo contrário, devemos torná-los os intérpretes do espírito da natureza, como aqueles que, tendo aprendido a ler, conseguem captar, através dos sinais gráficos, o pensamento de Shakespeare, de Goethe ou de Dante. Como se vê, a diferença é grande e o caminho longo (pp. 12-13).

[…] a criança que terminou o estudo da cartilha tem a ilusão de que sabe ler: de fato, lê os nomes das casas comerciais, os títulos dos jornais e todas as palavras ou frases que casualmente, seus olhos divisem. O engano em que elabora é muito simples e compreendê-lo-ia logo se, entrando numa biblioteca, quisesse entender o sentido do que lê nos livros, Veria, então, que “saber ler mecanicamente” nada significa e sairia da biblioteca para voltar à escola.

O mesmo ocorreu com a ilusão de preparar novos educadores para uma nova pedagogia, ensinando-lhes a antropometria e a psicologia experimental (p. 13).

O interesse em educar a humanidade deve estabelecer, entre o observador e o observado, laços mais íntimos que os existentes entre o zoologista, ou o botânico, e a natureza. Sendo mais íntimos tais laços serão necessariamente mais agradáveis. O homem não pode, sem dificuldades e atritos, afeiçoar-se ao inseto ou à reação química. Mas a afeição de homem para homem ocorre com maior facilidade; é tão simples, que não só os espíritos privilegiados, mas as próprias massas podem, sem esforço, atingi-la.

É preciso que o educador, suficientemente dotado do “espírito do cientista”, sinta-se confortado à ideia de que, muito em breve, experimentará a satisfação de tornar-se um observador da humanidade (p. 14).

De nada vale […] preparar apenas o educador; é preciso preparar também a escola. É necessário que a escola permita o livre desenvolvimento da atividade da criança para que a pedagogia científica nela possa surgir: essa é a reforma essencial. […] a concepção de liberdade que deve inspirar a pedagogia é universal: é a libertação da vida reprimida por infinitos obstáculos que se opõem ao seu desenvolvimento harmônico, orgânico e espiritual. Realidade de suprema importância, despercebida até o presente pela maioria dos observadores.

Não há necessidade de discutir, basta provar. Quem dissesse que o princípio de liberdade orienta, atualmente, a pedagogia e a escola, provocaria o riso, do mesmo modo que o provocaria uma criança que afirmasse, diante da caixa contendo as borboletas, que elas estão vivas e podem voar.

Um princípio de repressão, exagerado às vezes, a ponto de conduzir à tirania, constituiu o fundamento de grande parte da pedagogia e serviu também de base ao próprio princípio da escola (pp. 16-17).

A convicção de que o educador deve colocar-se no mesmo nível do educando levava-o a uma espécie de apatia: ele sabe que educa personalidades inferiores e é por isso que não consegue educar.

Da mesma forma, os professores dos “jardins de infância” julgam que se devem colocar no mesmo nível das crianças participando dos seus jogos, chegando mesmo a usar, muitas vezes, uma linguagem pueril.

É necessário, justamente, proceder de maneira contrária, sabendo fazer despertar na alma infantil o homem que aí se acha adormecido.

Tive essa intuição, e creio que não foi o material didático, mas a minha voz chamando-as que as fez despertar, levando-as a usar aquele material e, consequentemente, a educarem-se (pp. 31-32).

A mestra que desejar consagrar-se a este método educacional, deverá convencer-se disto: não se trata de ministrar conhecimentos às crianças, nem dimensões, formas, cores etc., por meio de objetos. Nem mesmo é nosso objetivo ensinar as crianças a servir-se, “sem erros”, do material que lhes é apresentado nos diversos métodos de exercícios. Seria reduzir nosso material ao nível de outro qualquer, sendo igualmente necessária, nesse caso, colaboração incessantemente ativa da mestra, preocupando-se esta em ministrar seus conhecimentos, atarefada em corrigir os erros de cada criança, até que cada uma tivesse acertado os seus exercícios. Numa palavra, queremos dizer que o material não constitui um novo meio posto entre as mãos da antiga mestra ativa para ajudá-la em sua missão de instrutora e educadora.

Não; o que vimos é uma radical transferência da atividade que antes existia na mestra, e que agora é confiada, em sua maior parte, à memória da criança.

A educação é compartilhada pela mestra e pelo ambiente. A antiga mestra “instrutora” é substituída por todo um conjunto, muito mais complexo; isto é, muitos objetos (os meios de desenvolvimento) coexistem com a mestra e cooperam para a educação da criança.

A diferença profunda que existe entre este método e as “lições objetivas” dos métodos antigos é não constituírem “os objetos” um auxílio para a mestra que os deverá explicar, mas são, eles próprios, “meios didáticos”.

Esse conjunto estabelece um auxílio para a criança que escolhe os objetos, pega-os, serve-se deles e exercita-se com eles segundo suas próprias tendências e necessidades, conforme o impulso do seu interesse. Os objetos, assim, tornam-se “meios de desenvolvimento” (p. 143).

O trabalho da nova mestra é o de um guia. Ela guia ensinando o manuseio do material, a procura de palavras exatas, orientando cada trabalho; guia ao impedir qualquer desperdício de energia ou, eventualmente, restabelecendo o equilíbrio.

Verdadeiro guia no caminho da vida, ela não instiga nem estanca; satisfaz-se com sua tarefa ao indicar a esse valioso peregrino, que é a criança, o caminho certo e seguro.

Para ser um guia seguro e prático, será necessário exercitar-se muito. Tendo compreendido que os períodos de iniciação e intervenção são diferentes, fica por vezes indecisa sobre o grau de maturidade da criança e sobre a oportunidade de passar de um período a outro. Às vezes, espera demasiadamente que a criança se exercite por si mesma em distinguir as diferenças, antes de intervir ensinando-lhe a nomenclatura (p. 154)

O dever de nossas mestras é bem mais simples que o das outras educadoras. O “necessário” é indicado, ao mesmo tempo em que se lhe ensina a evitar o “supérfluo”, que entrava o progresso das crianças; numa palavra, é-lhes dado um limite.

[…] Os preconceitos sobre a facilidade e sobre a dificuldade dos conhecimentos constituem um dos tantos cuidados de que livramos nossas mestras. A facilidade e a dificuldade das coisas não podem ser julgadas senão à luz de uma experiência direta.

[…] Uma palavra se faz, pois, necessária, a fim de combater esses preconceitos. Observar uma forma geométrica, não é analisá-la; ora, é com a análise que as dificuldades começam. Se se falasse às crianças, por exemplo, sobre lados e ângulos, explicando os seus respectivos conceitos, entrar-se-ia realmente no domínio da geometria, o que,
certamente, seria prematuro para a primeira infância (pp. 157-158).

  Texto extraído de “O educador”, em ‘textos selecionados’ do livro “Pedagogia científica: a descoberta da criança”, de Maria Montessori, presente no livro “Maria Montessori”, de Hermann Röhrs. [organização e tradução Danilo DI Manno de Almeida e Maria Leila Alves]. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Disponível no link. (acessado em 24.8.2017).

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Maria Montessori nas suas aulas

Maria Montessori – 1870-1952 (1)

Uma vida a serviço da infância
Maria Montessori é a figura de proa do movimento da nova educação. Existem poucos exemplos de tal empreitada visando instaurar um conjunto de preceitos educativos de alcance universal, e muito raros são os que exerceram uma influência tão poderosa e tão vasta nesse domínio. Esta universalidade é ainda mais surpreendente, pois, no estágio inicial de suas pesquisas, ela havia concentrado seus esforços nas crianças pequenas e só mais tarde ampliou o campo de suas pesquisas para incluir as crianças mais velhas e a família. A infância era, a seu ver, a fase crítica na evolução do indivíduo, o período durante o qual são lançadas as bases de todo desenvolvimento ulterior. É por isso que ela atribuía um alcance universal às observações que podemos fazer sobre esse período da vida. Maria Montessori foi também exemplar no que sempre se esforçou, conjugar teoria e prática: suas Casas das Crianças e seus materiais didáticos testemunham essa exigência. Nenhum outro representante do movimento da Educação Nova aplicou suas teorias em uma escala
tão vasta. O programa variado que ela lançou ao campo foi único.

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Maria Montessori

O mais notável é que o debate em torno de suas ideias é tão apaixonado e suscita tantas controvérsias quanto à época em que apareceram suas primeiras obras (em 1909, instigada por duas amigas muito próximas, Anna Macheroni e Alice Franchetti). A partir dos anos que se seguiram, começaram a traduzir seus livros nas principais línguas do mundo. A série de conferências, claras e estimulantes, que ela proferiu no mundo inteiro facilitou a difusão de seus ideais.

A vontade de apreender esse fenômeno – a relação entre a teoria e a prática, o indivíduo e seu trabalho, o que foi emprestado e o que é original – não marcou menos ontem que hoje, como revela o número de publicações na República Federativa da Alemanha, que trataram recentemente dessas questões (Böhm, 1991). Foi preciso esperar a reedição de suas obras completas para poder ter um julgamento sobre o conjunto de sua obra.

A permanência do interesse suscitado por seus trabalhos não é devido a um desejo reverente de proteger e preservar o passado, mas resulta de um autêntico espírito de pesquisa. É assim por dois motivos: em primeiro lugar, o atrativo que a personalidade de Maria Montessori exerce, atrativo que sobrevive a ela na sua obra e confere a suas ideias um fascínio particular; em seguida, o objetivo que atribuiu a seu trabalho, a saber, fornecer à educação das crianças uma base científica sólida constantemente verificada pela experiência.

A experiência fundamental
Maria Montessori nasceu em 1870 em Chiaravalle, próximo à Ancone, na Itália, e morreu em 1952 em Nordwjik, na Holanda.

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Maria Montessori em 1913

Em 1896, é a primeira mulher italiana a concluir medicina, com um estudo sobre neuropatologia. Em seguida, trabalha durante dois anos como assistente na clínica psiquiátrica da Universidade de Roma, onde é principalmente encarregada de estudar o comportamento de um grupo de jovens com retardos mentais. O tempo passado
com essas crianças lhe permite constatar que suas necessidades e seu desejo de brincar permaneceram intactos, o que a leva a buscar meios para educá-los. É nesta época que descobre as obras dos médicos franceses Bourneville, Itard, Séguin e a de Pereira, espanhol que viveu em Paris e conheceu Rousseau e Diderot. Ela adquire um interesse particular pelos estudos de Itard – que tentou civilizar acriança selvagem encontrada nas florestas de Aveyron estimulando e desenvolvendo seus sentidos – e de Édouard Séguin, aluno de Itard. Em geral, permaneceu discreta sobre as fontes de sua inspiração, mas nos seus escritos descreve de maneira aprofundada seus esforços para conciliar suas teses com aquelas de Séguin, principalmente as que são expostas no seu livro Idiocy and its treatment by the physiological method [A idiotia e seu tratamento pelos métodos fisiológicos(2)], publicado depois que ele emigrou para os Estados Unidos e no qual descreve seu método, pela segunda vez.

Inspirada pela experiência que tinha adquirido na clínica em contato com as crianças, que tinha visto brincar no assoalho com pedaços de pão por falta de brinquedos, e pelos exercícios postos em prática por Séguin para refinar as funções sensoriais, Maria Montessori decidiu se dedicar aos problemas educativos e pedagógicos. Em 1900, ela trabalhou na Scuola Magistrale Ortofrenica, instituto encarregado da formação dos educadores das escolas para crianças deficientes e retardadas mentais. Após ter estudado pedagogia, ocupou-se da modernização de um bairro pobre de Roma, San Lorenzo, encarregando-se da educação das crianças. Para atender às suas necessidades,
ela fundou uma casa das crianças (Casa dei Bambini) onde estas podiam aprender a conhecer o mundo, e a desenvolver sua aptidão para organizar a própria existência.

San Lorenzo marcou o começo de uma espécie de movimento de renascimento que contribuiu para avivar sua fé na possibilidade de melhorar a humanidade por meio da educação das crianças. Ainda que sua ação fosse fundada sobre princípios científicos,
Maria Montessori não considerava a infância menos que uma continuação do ato da criação. Essa combinação de pontos de vista diferentes constitui o aspecto verdadeiramente fascinante de sua obra: fazendo experiências e observações precisas em um espírito
científico, ela via na fé, na esperança e na confiança, os meios mais eficazes de ensinar às crianças a independência e a confiança em si.

As Casas das Crianças que foram criadas nos anos seguintes tornaram-se algumas vezes verdadeiros locais sagrados para onde os educadores se rendiam em peregrinação; elas constituíram sempre modelos mostrando como resolver os problemas pedagógicos.

A reflexão e a meditação tiveram um papel importante tanto na sua vida pessoal quanto no seu programa educativo. Recusando-se a adotar métodos estranhos à sua abordagem, rejeitando os compromissos, ela estava certa de defender a causa de todas as crianças, de atender às suas necessidades, e sabia passar sua mensagem com inteligência, clareza e resolução. Apesar da precisão de sua linguagem, ela passava aos olhos de muitos como uma espécie de padre dos direitos das crianças, em um mundo hostil. Seu destino pessoal (deu a luz a uma criança natural) contribuiu certamente à atmosfera de mistério que envolvia seu trabalho. Mas é precisamente graças à sua atividade que ela encontrou o meio de resolver esse problema de maneira exemplar. (Kramer, 1976, p.88)

Seus colaboradores mais próximos – Anna Macheroni e, por algum tempo, Helen Pakhurst – se dedicaram completamente à tarefa. Seu filho, e em seguida seu neto, Mario Montessori, se dedicaram também. Entretanto, seus compromissos não eram motivados
pela preocupação de manter uma tradição familiar, mas pela preocupação em preservar uma herança bem mais ampla, “a educação dos seres humanos”. (Montessori, 1977).

(1) Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle d’éducation comparée. Paris, Unesco: Escritório Internacional de Educação, v. 24, n. 1-2, pp. 173-188, 1994 (89/90). Tradução de Danilo Di Manno de Almeida, com colaboração de Carolina Di Manno de Almeida. Presente no livro “Maria Montessori”, de Hermann Röhrs. [organização e tradução Danilo DI Manno de Almeida e Maria Leila Alves]. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Ler perfil completo AQUI!

(2) Sua relação com seu professor Séguin é tratada com profundidade em Kramer, R. Maria Montessori: a biography. New York, 1976; também em Hellbrügge, T. Unser Montessori Modell. Munich, 1977, p. 68 e seg.; e em Böhn, W. Maria Montessori, Hintergrund und Prinzipien ihres pädagogischen Denkens, Bad Heilbrunn: Obb, 1991. p. 58.







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