O educador, por Maria Montessori
[…] creio que devemos preparar no educador mais o espírito que o mecanismo do cientista, o que vale dizer que a direção dessa preparação deve estar voltada para o espírito.
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Jamais pretendemos, evidentemente, transformar o educador elementar num assistente de antropologia ou de psicologia científica, nem, tampouco, num higienista. Desejamos, porém, dirigi-lo no caminho da ciência experimental, ensinando-o a manejar um pouco cada um dos seus instrumentos, limitando esse aprendizado ao objetivo em vista e orientando-o na via do espírito científico.
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Devemos despertar na consciência do educador o interesse pelas manifestações dos fenômenos naturais em geral, levando-o a amar a natureza e a sentir a ansiosa expectativa de todo aquele que aguarda o resultado de uma experiência que preparou com cuidado e carinho.
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Os instrumentos são como as letras do alfabeto e é preciso saber manejá-los para poder ler na natureza; assim como o livro, que encontra no alfabeto o meio de compor as palavras reveladoras dos mais profundos pensamentos, assim, também, a natureza, graças ao mecanismo da experiência, revela a infinita série dos seus segredos.
Ora, qualquer pessoa que saiba soletrar as palavras de uma cartilha pode, a rigor, ler as de uma obra de Shakespeare. Da mesma forma, quem é iniciado unicamente na técnica da experimentação é comparável ao que apreende apenas o sentido literal das palavras que soletra na cartilha. Deixaríamos os educadores nesse nível se limitássemos a sua preparação ao mecanismo.
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Pelo contrário, devemos torná-los os intérpretes do espírito da natureza, como aqueles que, tendo aprendido a ler, conseguem captar, através dos sinais gráficos, o pensamento de Shakespeare, de Goethe ou de Dante. Como se vê, a diferença é grande e o caminho longo (pp. 12-13).
[…] a criança que terminou o estudo da cartilha tem a ilusão de que sabe ler: de fato, lê os nomes das casas comerciais, os títulos dos jornais e todas as palavras ou frases que casualmente, seus olhos divisem. O engano em que elabora é muito simples e compreendê-lo-ia logo se, entrando numa biblioteca, quisesse entender o sentido do que lê nos livros, Veria, então, que “saber ler mecanicamente” nada significa e sairia da biblioteca para voltar à escola.
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O mesmo ocorreu com a ilusão de preparar novos educadores para uma nova pedagogia, ensinando-lhes a antropometria e a psicologia experimental (p. 13).
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O interesse em educar a humanidade deve estabelecer, entre o observador e o observado, laços mais íntimos que os existentes entre o zoologista, ou o botânico, e a natureza. Sendo mais íntimos tais laços serão necessariamente mais agradáveis. O homem não pode, sem dificuldades e atritos, afeiçoar-se ao inseto ou à reação química. Mas a afeição de homem para homem ocorre com maior facilidade; é tão simples, que não só os espíritos privilegiados, mas as próprias massas podem, sem esforço, atingi-la.
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É preciso que o educador, suficientemente dotado do “espírito do cientista”, sinta-se confortado à ideia de que, muito em breve, experimentará a satisfação de tornar-se um observador da humanidade (p. 14).
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De nada vale […] preparar apenas o educador; é preciso preparar também a escola. É necessário que a escola permita o livre desenvolvimento da atividade da criança para que a pedagogia científica nela possa surgir: essa é a reforma essencial. […] a concepção de liberdade que deve inspirar a pedagogia é universal: é a libertação da vida reprimida por infinitos obstáculos que se opõem ao seu desenvolvimento harmônico, orgânico e espiritual. Realidade de suprema importância, despercebida até o presente pela maioria dos observadores.
Não há necessidade de discutir, basta provar. Quem dissesse que o princípio de liberdade orienta, atualmente, a pedagogia e a escola, provocaria o riso, do mesmo modo que o provocaria uma criança que afirmasse, diante da caixa contendo as borboletas, que elas estão vivas e podem voar.
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Um princípio de repressão, exagerado às vezes, a ponto de conduzir à tirania, constituiu o fundamento de grande parte da pedagogia e serviu também de base ao próprio princípio da escola (pp. 16-17).
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A convicção de que o educador deve colocar-se no mesmo nível do educando levava-o a uma espécie de apatia: ele sabe que educa personalidades inferiores e é por isso que não consegue educar.
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Da mesma forma, os professores dos “jardins de infância” julgam que se devem colocar no mesmo nível das crianças participando dos seus jogos, chegando mesmo a usar, muitas vezes, uma linguagem pueril.
É necessário, justamente, proceder de maneira contrária, sabendo fazer despertar na alma infantil o homem que aí se acha adormecido.
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Tive essa intuição, e creio que não foi o material didático, mas a minha voz chamando-as que as fez despertar, levando-as a usar aquele material e, consequentemente, a educarem-se (pp. 31-32).
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A mestra que desejar consagrar-se a este método educacional, deverá convencer-se disto: não se trata de ministrar conhecimentos às crianças, nem dimensões, formas, cores etc., por meio de objetos. Nem mesmo é nosso objetivo ensinar as crianças a servir-se, “sem erros”, do material que lhes é apresentado nos diversos métodos de exercícios. Seria reduzir nosso material ao nível de outro qualquer, sendo igualmente necessária, nesse caso, colaboração incessantemente ativa da mestra, preocupando-se esta em ministrar seus conhecimentos, atarefada em corrigir os erros de cada criança, até que cada uma tivesse acertado os seus exercícios. Numa palavra, queremos dizer que o material não constitui um novo meio posto entre as mãos da antiga mestra ativa para ajudá-la em sua missão de instrutora e educadora.
Não; o que vimos é uma radical transferência da atividade que antes existia na mestra, e que agora é confiada, em sua maior parte, à memória da criança.
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A educação é compartilhada pela mestra e pelo ambiente. A antiga mestra “instrutora” é substituída por todo um conjunto, muito mais complexo; isto é, muitos objetos (os meios de desenvolvimento) coexistem com a mestra e cooperam para a educação da criança.
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A diferença profunda que existe entre este método e as “lições objetivas” dos métodos antigos é não constituírem “os objetos” um auxílio para a mestra que os deverá explicar, mas são, eles próprios, “meios didáticos”.
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Esse conjunto estabelece um auxílio para a criança que escolhe os objetos, pega-os, serve-se deles e exercita-se com eles segundo suas próprias tendências e necessidades, conforme o impulso do seu interesse. Os objetos, assim, tornam-se “meios de desenvolvimento” (p. 143).
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O trabalho da nova mestra é o de um guia. Ela guia ensinando o manuseio do material, a procura de palavras exatas, orientando cada trabalho; guia ao impedir qualquer desperdício de energia ou, eventualmente, restabelecendo o equilíbrio.
Verdadeiro guia no caminho da vida, ela não instiga nem estanca; satisfaz-se com sua tarefa ao indicar a esse valioso peregrino, que é a criança, o caminho certo e seguro.
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Para ser um guia seguro e prático, será necessário exercitar-se muito. Tendo compreendido que os períodos de iniciação e intervenção são diferentes, fica por vezes indecisa sobre o grau de maturidade da criança e sobre a oportunidade de passar de um período a outro. Às vezes, espera demasiadamente que a criança se exercite por si mesma em distinguir as diferenças, antes de intervir ensinando-lhe a nomenclatura (p. 154)
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O dever de nossas mestras é bem mais simples que o das outras educadoras. O “necessário” é indicado, ao mesmo tempo em que se lhe ensina a evitar o “supérfluo”, que entrava o progresso das crianças; numa palavra, é-lhes dado um limite.
[…] Os preconceitos sobre a facilidade e sobre a dificuldade dos conhecimentos constituem um dos tantos cuidados de que livramos nossas mestras. A facilidade e a dificuldade das coisas não podem ser julgadas senão à luz de uma experiência direta.
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[…] Uma palavra se faz, pois, necessária, a fim de combater esses preconceitos. Observar uma forma geométrica, não é analisá-la; ora, é com a análise que as dificuldades começam. Se se falasse às crianças, por exemplo, sobre lados e ângulos, explicando os seus respectivos conceitos, entrar-se-ia realmente no domínio da geometria, o que,
certamente, seria prematuro para a primeira infância (pp. 157-158).
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– Texto extraído de “O educador”, em ‘textos selecionados’ do livro “Pedagogia científica: a descoberta da criança”, de Maria Montessori, presente no livro “Maria Montessori”, de Hermann Röhrs. [organização e tradução Danilo DI Manno de Almeida e Maria Leila Alves]. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. Disponível no link. (acessado em 24.8.2017).
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Referências citadas das Obras de Maria Montessori
MONTESSORI, M. L’autoeducazione nelle scuole elementari. Garzanti, 1962.
______. Bambini viventi nella Chiesa. Garzanti, 1970.
______. Dall’infanzia all’adolescenza. Garzanti, 1970.
______. Das kreative Kind. Fribourg, 1972.
______. Die Entdeckung des Kindes. Fribourg, 1969.
______. Educazione all libertà. Garzanti, 1986.
______. Educazione e pace. Garzanti, 1970.
______. Formazione dell’uomo. Garzanti, 1972.
______.Kinder sind anders. Stutttgart, 1952.
______. La mente del bambino. Garzanti, 1975.
______. The Montessori method. Translated by Anne E. George. New York: Frederick A. Strokes, 1912.
______. Schule des Kindes. Fribourg, 1976.
______. La scoperta del bambino. Garzanti, 1980.
______. Il segreto dell’infanzia. Garzanti, 1970.
______. Von der Kindheit zur Jugend. Fribourg, 1966.
Leia também:
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